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Argentina: "a gente se nega a aceitar atrocidade de tamanha magnitude”

29-02-2008 Reportagem

Bárbara Noailles é médica. Ela tinha sete anos, em outubro de 1976, quando seu pai foi seqüestrado no seu lugar de trabalho, uma oficina mecânica na cidade de Buenos Aires, e desapareceu.

Meu pai desapareceu no dia 15 de outubro de 1976. Ele era militante do Exército Revolucionário do Povo. Um dia foram buscá-lo simultaneamente no seu trabalho e na casa da minha avó. Hoje, ainda há muitas coisas que não posso saber como aconteceu e muitas que eu não lembro. O certo é que meu pai desapareceu quando eu tinha sete anos.

Um vizinho da minha avó chamou a polícia porque viu que pessoas armadas estavam entrando na casa. A polícia demorou cinco horas para chegar. De todas as maneiras, meu pai estava na mecânica e o levaram em um caminhão junto com um amigo escultor que tinha um ateliê no mesmo local. Isto é o que sabemos agora, segundo o amigo do meu pai que foi liberado no dia seguinte.

Meu pai foi levado numa sexta-feira e neste mesmo dia alguém ligou para nossa casa para dizer que o seqüestraram. Para mim, falaram que ele tinha viajado. Não lembro deste momento, mas sim lembro de uma conversa que tive com a minha mãe porque percebia algo estranho.

 
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    Eu estava no quinto ano da faculdade de psiquiatria, tinha 22 anos. Por isso, tive que ir várias vezes ao hospital Borda, um importante hospital neuropsiquiátrico de Buenos Aires.

    Na primeira vez que fui, tive uma forte sensação de opressão. Na segunda vez, participei na entrevista de um paciente esquizofrênico que dizia estar ali porque haviam interceptado uma carta “subversiva”. No seu delírio, a esquizofrenia não era a causa da sua internação.    

    Neste dia saí dali pensando o que realmente causava esta sensação de opressão em mim.    

    E se deixaram meu pai louco durante uma sessão de tortura, e se agora ele nem soubesse quem ele era? Poderia estar aqui. Se pensasse racionalmente, saberia que não podia ser, mas eu tinha esta sensação porque não há um corpo e não há um momento que te permita dizer: até agora ele respira e a partir de agora ele não respira mais”.    

    É óbvio que este momento existiu, mas só os seqüestradores ou seus torturadores souberam. Eu não sei qual foi o final e não sei se quero saber, não sei se os detalhes me interessam. Nada mudará o que aconteceu comigo. Embora pense algumas vezes que o fantasma de todos os possíveis finais espantosos juntos seja muito pior do que o concreto em um só.      
         

Não lembro quanto tempo depois esta conversa aconteceu, se foram três dias ou um mês ou três meses depois, não sei. Deve ter sido mais de três dias depois. Enfrentei a minha mãe e perguntei: “Se o papai está viajando, porque ele não me liga nem me escreve?”.

Então, ela me respondeu: “Na verdade seu pai não está viajando, ele está preso”. Claro, ela, adulta, podia entender o que significava ser preso político, mas eu tinha sete anos, assistia a série norte americana chamada “Chips” na televisão e, para mim, os presos eram os maus e meu pai não era mau.

Na semana do desaparecimento do meu pai, a segunda esposa dele e mãe do meu único irmão, foram para o exílio. Meu irmão tinha três anos. Foi uma ruptura em dobro, porque embora eu não morasse com ele, ele era meu irmão e passávamos os fins de semana ju ntos.

Não voltei a vê-lo até 1984, porque a custódia era exclusiva do meu pai e ele não estava oficialmente morto, então a mãe não podia conseguir a custódia. Eles saíram do país com documentos falsos e não puderam voltar até que a democracia voltasse.

Eu sei disso, porque vi mais tarde que minha avó havia apresentado um hábeas corpus a favor do meu pai em fevereiro de 1977. Minha avó disse que a demora foi porque nesta época acreditava-se que não se deveria apresentar o hábeas corpus porque era mais arriscado para o desaparecido.

Para mim é muito difícil saber quando tomei consciência de que meu pai era um desaparecido. Lembro que, desde os sete até os dez ou onze anos, eu falava que meu pai morava na Costa Rica ou Bolívia, países onde o meu irmão esteve exilado com a mãe dele. Eu não podia aceitar que o meu pai estivesse preso e falava que estava no exterior morando com o meu irmão.

Lembro da primeira vez que contei para alguém que o meu pai era um desaparecido, foi no segundo ano do secundário, em 1983. Um colega tinha levado um jornal no qual estava publicada uma lista de pessoas desaparecidas. O jornal circulou entre todos e o primeiro que fiz, obviamente, foi procurar por meu pai e ele aparecia na lista.

Já não podia agüentar todos os anos de boca fechada. De qualquer maneira, neste momento, contei somente para a minha melhor amiga de então. Passaram-se vários anos até que eu pudesse dizer abertamente que meu pai era desaparecido, não sei, até meus 18, 19 anos.

Eu mudei muito depois que me uni à associação HIJOS, onde meu irmão começou a militar depois que voltou ao país. Entrei em 1996 ou 97 e me fez muito bem. Embora pareça mentira, tinha a sensação de ser a única pessoa que tinha sofrido o desaparecimento de um pai.

Mesmo que, racionalmente, eu soubesse que deveria haver muita gente na mesma situação que eu, n ão é o mesmo poder compartilhar as experiências com alguém que passou pelas mesmas coisas; cada um teve a sua vivência. Até o meu irmão, filho do mesmo pai desaparecido que eu, o viveu de maneira diferente: ele foi exilado, sua mãe era militante. Ele conta que tinha uns três ou quatro anos quando sua mãe lhe disse “seu pai está morto”.

No meu caso, pelo contrário, minha mãe não era militante e nunca me falou “seu pai está morto”. Eu tinha a esperança, quando a ditadura terminou e Raul Alfonsín assumiu o governo, de que os campos de concentração onde ainda houvesse gente viva fossem descobertos, por mais que me desse conta, racionalmente, de que não poderia ser. Acho que naquele momento, não somente eu que tinha 14 anos, mas muitos adultos tinham esta esperança, a sensação de que tinham que estar em algum lado. Acho que a cabeça se nega em aceitar determinadas atrocidades.

Quando o meu pai desapareceu e como eu era pequena, não podia pensar “está acontecendo tal coisa no país e é provável que já o mataram”. Somente com o tempo foi que pude pensar que ele não voltaria mais.

E do “não voltaria mais” até o “está morto” também existe uma distância...

Não sei dizer quando comecei a sentir que o meu pai estava morto. Porque o meu pai está morto, assassinaram o meu pai, ele não teve um ataque cardíaco atravessando a rua. Não é que minha mãe se engravidou e quando nasci meu pai foi comprar cigarro e nunca mais voltou. Isto não é um desaparecido. Estamos na Argentina: um desaparecido é um desaparecido político.



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