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Chade: relatos sobre os feridos de guerra de um cirurgião do CICV

21-12-2007 Reportagem

Artigo reproduzido neste site com a gentil permissão do editor *

     

©IRIN/David Hecht      
   
    Amilcar Contreras, cirurgião chefe de uma equipe de reforço do CICV que chegou ao Chade no dia 2 de dezembro      
         

N’DJAMENA, 19 de dezembro de 2007 (IRIN) – O número de vítimas nos últimos combates entre o governo e os rebeldes no leste do Chade foi tão elevado que a equipe cirúrgica do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no país não teve condições de atender a todos, e uma segunda equipe foi enviada de Genebra.

“Tão logo cheguei [ 2 de dezembro ] me deram um grande número de feridos para cuidar”, afirmou ao IRIN o cirurgião-chefe da equipe de apoio, Amílcar Contreras, durante uma pausa nas cirurgias no Hospital La Liberte, em N’ Djamena. “Alguns estavam esperando há uma semana para serem operados, enquanto outros tinham acabado de chegar.”

Contreras relatou que rapidamente montou um sistema de “triagem” para priorizar os casos mais urgentes.

“Tive de lidar com coisas terríveis como um rapaz que tinha estilhaços de granada alojado no olho”, afirmou. “A única solução foi remover totalmente o olho; tive de fazer isso rápido caso contrário poderia haver uma infecção e ele estaria arriscado a perder a visão no outro olho.”

Mas primeiro Contreras precisou obter autorização do paciente para remover o seu olho o que não foi fácil. “Ele disse que, ao invés disso, gostaria de buscar tratamento tradicional. Tive de convencê-lo que ninguém poderia salvar o seu olho e, caso não o retirasse, a sujeira que havia dentro ficaria lá e o seu estado pioraria.”

Contreras contou que a maioria dos ferimentos obtidos no campo de batalha foi provocada por balas e granadas. “Às vezes é realmente difícil perceber a diferença, particularmente quando uma bala entra e sai de um corpo e depois entra em outro”, afirmou. “Ela atravessa tantos ossos e tecidos que fica deformada e pode parecer como uma granada.”

Os cirurgiões de guerra não precisam ser especialistas em diferentes tipos de munições a fim de desenvolver seu trabalho, acrescentou. “O tipo de bala não me preocupa. Tudo o que realmente me preocupa é o dano que o metal provocou no corpo”, declarou.

  Filmes de guerra  

     

Se um pedaço de metal acaba alojado numa parte do co rpo que não representa uma ameaça de vida, os cirurgiões de guerra simplesmente deixam que ela permaneça onde está. “Nos filmes de guerra você sempre vê os cirurgiões empenhados em retirar as balas, mas isto é errado”, afirmou. “Uma bala faz um buraco pequeno e para removê-la você faz um buraco maior, de forma que você pode acabar causando mais problemas que a bala.”

Os filmes de guerra também têm freqüentemente cenas de um cirurgião costurando soldados feridos no campo de batalha, disse. “Mas os campos de batalha são sujos, de forma que na maior parte do tempo é um erro fechar um ferimento porque a sujeira fica dentro e você não pode tratar a infecção que surge.”

Ele afirmou que as equipes médicas que não receberam treinamento adequado em cirurgias de guerra freqüentemente cometem este erro. De fato, os feridos de guerra costumam passar por duas operações, afirmou. A primeira é para cortar o tecido atingido e limpar o ferimento; a segunda, que em geral acontece alguns dias depois, é para fechar.

  Capacidade de reserva para tratar dos civis  

     

Como os hospitais de N’djamena estavam cheios de combatentes feridos nos dias que se seguiram ao início dos combates no final de novembro, o CICV também teve de garantir que as cirurgias normalmente realizadas continuassem a serem feitas. “Precisamos sempre ter uma reserva para tratar dos civis”, disse Contreras. “É o princípio para o CICV; quando as pessoas ficam feridas em um acidente de carro ou em qualquer outra coisa, não devem permanecer sem tratamento.”

O CICV deve contrabalançar este princípio com o Direito Internacional Humanitário em relação aos feridos de guerra, afirmou o chefe da delegação do CICV em N’Djamena, Thomas Merkelbach. “As pessoas feridas que não estão tomando parte d os combates têm o direito de receber tratamento médico rapidamente.”

  Três objetivos básicos  

Com efeito, os médicos do CICv só fazem cirurgias nos combatentes feridos com três objetivos básicos: o primeiro é salvar a vida do combatente; o segundo é salvar seus membros, e o terceiro é salvar a funcionalidade dos membros e dos órgãos. “É isso o que precisamos fazer sempre”, afirmou.

No entanto, às vezes esses três princípios entram em conflito entre si. “As pessoas sempre nos dizem que querem ter os membros do corpo salvos, mesmo depois que lhes comunicamos que suas vidas estão em risco”, disse Contreras. “Não importa quando lhes dizemos que, de qualquer maneira, nunca poderão usar seu membro de novo.”

Tomar a decisão de uma amputação é difícil, acrescentou. “Esta semana tratei de um rapaz de 26 anos com uma perna tão deteriorada que não tive outra opção a não ser cortá-la.”

“Foi realmente triste, mas o que você pode fazer?”, afirmou. “Isto é a guerra.”

Isto não quer dizer que os cirurgiões de guerra sejam insensíveis em relação ao sofrimento dos feridos de guerra, afirmou. Mas também não é bom se envolver demais, “caso contra´rio você entra em parafuso”, disse ele. “O truque é conseguir o equilíbrio correto”, afirmou.

Um dos melhores momentos dos dez dias que Contreras passou no cenário das cirurgias de guerra aconteceu quando ele atendeu um combatente com um buraco de bala no queixo. “A bala atravessou o corpo dele e havia um ferimento de saída nas suas costas. Mas mesmo assim só quebrou cinco costelas”, disse. “Nenhum de seus órgãos vitais foi atingido, o que significa que não tivemos de operá-lo”, afirmou.

  • Notícias e análises humanitárias, Escritório da ONU para a Coordenação de Questões Humanitárias – http://www.irinnews.org