Paquistão: vidas e meios de subsistência estão em jogo

08-09-2010 Entrevista

Cinco semanas depois das enchentes terem atingido o país pela primeira vez, no final de julho – e com milhões de vítimas ainda necessitadas – o chefe da delegação do CICV em Islamabad, Pascal Cuttat, fala sobre as atuais prioridades e alguns dos desafios para as ações de socorro.

     
©CICV / J. Tanner / pk-e-00965 
   
Muzzafargarh, província de Punjab. Famílias deslocadas pela enchente buscam alimentos e abrigo em uma escola. 
               
©CICV / J. Tanner / pk-e-00956 
   
Nowshera, distrito de Nowshera, província de Khyber Pakhtunkhwa. Uma mulher e sua filha de um ano se refugiam em uma sala de aula de uma escola técnica. 
               
©CICV / J. Tanner / pk-e-00957 
   
Azel Khel, distrito de Nowshera, província de Khyber Pakhtunkhwa. Famílias deslocadas em um campo improvisado. As condições sanitárias são deploráveis. 
               
©CICV / J. Tanner / pk-e-00959 
   
Gujrat, distrito de Muzzafargarh, província de Punjab. Este senhor é cego e deficiente físico. Ele foi resgatado de helicóptero, mas está em um campo onde não há abrigo, banheiro, eletricidade, nem água potável. 
               
©CICV / J. Tanner / pk-e-00963 
   
Taga Khuh, distrito de Muzzafargarh, província de Punjab. Famílias deslocadas pela enchente dormem na beira da estrada. 
               
©CICV / J. Tanner / pk-e-00964 
   
Hospital Distrital de Muzzafargarh, província de Punjab. Este bebê de três meses sofre de diarreia, vômitos e febre, mas agora recebe antibióticos de maneira intravenosa. O bebê e a família foram evacuados devido à inundação que devastou Gujrat. 
           
     
 
   
Pascal Cuttat, chefe da delegação do CICV no Paquistão 
         

  O senhor pode resumir a situação no terreno hoje nas áreas onde o CICV e o Crescente Vermelho estão trabalhando?  

O mais impressionante – realmente impressionante – é que já se passaram cinco semanas desde o início da crise e ainda há pessoas que precisam fugir das inundações que continuam se aproximando. Centenas de milhares de pessoas em Sindh, por exemplo, ainda precisam fugir.

A boa notícia é que as enchentes no norte estão, por fim, baixando. Por outro lado, elas ainda vão em direção ao sul e, portanto, ainda há um desastre em curso.

Somado a isso, está a dificuldade em levar ajuda às vítimas, seja porque as pontes e estradas estão destruídas, os hospitais trabalham no limite ou simple smente pela magnitude da tarefa. O CICV apoia os 100 mil voluntários do Crescente Vermelho Paquistanês que levam alimentos, utensílios domésticos e artigos de higiene para as pessoas afetadas pela enchente. Eles estão fazendo um trabalho fantástico, mas este é um desastre de magnitude sem precedentes e os desafios são enormes.

  Recentemente, a mídia chamou a atenção para a politização do socorro e para a falta de acesso às áreas atingidas pela enchente devido à situação da segurança. O que o senhor pensa a respeito disso?  

Estamos no Paquistão para assistir as pessoas afetadas pelo conflito. Ajudar as vítimas da violência armada é o que fazemos – em cumprimento ao nosso mandato – onde quer que trabalhemos no mundo. Somente no ano passado, mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas em decorrência do conflito dentro da divisão de Malakand. Elas receberam assistência do Crescente Vermelho Paquistanês e do CICV. Muitas delas ainda estão deslocadas e continuamos as apoiando. As enchentes foram um fator adicional e dezenas de milhares de pessoas sofrem uma combinação de violência e inundação.

Por exemplo, o Balochistão, agora, é afetado tanto pelo conflito armado como pela enchente. Ajudar as pessoas afetadas nas áreas rurais do Balochistão, pessoas que já estão deslocadas pela violência armada e agora também foram atingidas gravemente pelas inundações, tem de ser uma de nossas prioridades.

O CICV trabalha de maneira independente de todas as outras organizações, embora coordenemos nossas ações com todas as partes para assegurar a transparência e evitar a duplicação de esforços. Desde o início das enchentes, o Comitê, em conjunto com o Crescente Vermelho Paquistanês, pôde levar alimentos e outros artigos essenciais para mais de meio milhão de vítimas de enchentes. Nosso objetivo é apoiar o Crescente Vermelho Paquistanês em suas ações para l evar assistência emergencial a quase 1,4 milhão de pessoas nos próximos três meses e restabelecer os meios de subsistência de 350 mil pessoas por um período mais longo. Qualquer tentativa de negar acesso às vítimas, seja por ameaças de ataques aos profissionais de socorro ou por outros meios, só prejudicariam a grande resposta humanitária para um dos maiores desastres naturais na história do Paquistão. O CICV acredita que seu mandato neutro, independente e humanitário é conhecido em todas as áreas do país, onde tem trabalhado há quase 30 anos, e que qualquer tentativa de restringir suas operações por razões de segurança só resultaria em mais sofrimento para as vítimas, que precisam de apoio.

Com relação à suposta politização do socorro, deixe-me simplesmente dizer que quando há uma necessidade crítica de socorro humanitário – como esta de agora, cuja escala não tem precedentes e que atingiu grande parte do país – todas as ações de socorro precisam estar concentradas em prestar uma resposta puramente humanitária. Falo das ações de todos – autoridades, forças armadas, comunidades internacional e ONGs locais, para não mencionar a generosa efusão de apoio demonstrada pelas pessoas comuns para ajudar seus irmãos mais necessitados. Não há espaço para política quando as vidas das pessoas e seus meios de subsistência estão em jogo.

  Todos concordam que alimentos e abrigos são extremamente necessários. Mas quais são as outras prioridades para o CICV, por exemplo, com relação à saúde e à água?  

Ainda estamos muito preocupados com a situação da saúde, que deriva diretamente do fato de milhões de deslocados carecerem de água potável e, portanto, da potencial disseminação de doenças transmitidas pela água, como a diarreia, e doenças vetoriais, como a malária.

Para nossa surpresa e alívio, não houve grandes surtos de doenças contagiosas transmitid as pela água até o momento, mas nossa preocupação é que, a qualquer momento, presenciemos um surto, se a situação no terreno não melhorar.

O CICV tem uma abordagem preventiva para com a saúde, que envolve a distribuição de água potável às comunidades afetadas e a distribuição de sabão e de outros artigos de higiene.

Os engenheiros hídricos e os encarregados do terreno do CICV, junto com as comunidades locais, já limparam cerca de 75 poços contaminados em Khyber Pakhtunkhwa. Também já identificaram fontes de água limpa, perfuraram poços, começaram a consertar os sistemas de distribuição de água e levaram caminhões-pipas para centenas de milhares de pessoas nos campos e nas beiras de estradas perto de Dera Ismail Khan. Os voluntários do Crescente Vermelho Paquistanês, apoiados pelo CICV, distribuíram dezenas de milhares de garrafas de água mineral para as pessoas que não contam com água potável em várias áreas do país afetadas pela enchente.

As medidas preventivas de saúde que tomamos incluem a instalação de dois centros de tratamento de diarreia: um em Paroa, fora de Dera Ismail Khan, e outros em Hangu. Outros dois centros de tratamento de diarreia estão sendo instalados no hospital distrital de Dera Ismail Khan e na cidade vizinha de Tank. Dera Ismail Khan parece ser uma das áreas mais afetadas na província de Khyber Pakhtunkhwa no que diz respeito à diarreia aquosa – o centro de tratamento de diarreia em Paroa já atendeu mais de mil pacientes desde que foi aberto, em 13 de agosto. Nem todos, no entanto, são casos graves.

A importância de ver prevenção de uma perspectiva holística, combinando iniciativas que visam a melhorar tanto a situação da água e da saúde pública, não pode ser superenfatizada. Por exemplo, foi possível determinar em que área em Dera Ismail Khan está o maior número de pessoas afetadas pela diarreia. Quando identificamos uma aldeia ou cidade gravemente atingida, enviamos n ossos engenheiros hídricos para lá para ver a situação da água e fazer melhorias. Foi o que aconteceu recentemente em Mehra, uma cidade de mais de 50 mil habitantes, por exemplo.

O que fizemos também foi distribuir dezenas de milhares de pacotes de sais de reidratação oral para nossos colegas médicos no Crescente Vermelho Paquistanês. O uso desses sais nas unidades básicas de saúde, no distrito de Larkana na província de Sindh, por exemplo, demonstrou ser muito eficaz como meio de evitar que as pessoas que apresentavam os sintomas de diarreia adoecessem gravemente.

Além do apoio que prestamos ao Crescente Vermelho Paquistanês, por exemplo, com a distribuição de remédios e suprimentos para as unidades básicas de saúde e clínicas móveis, também fornecemos remédios para os hospitais distritais e unidades básicas de saúde administradas pelo governo à medida que nos pedem.

Doenças de pele como sarna estão entre os problemas de saúde mais comuns, além da diarreia. À medida que as águas baixam, surgem locais com água parada. A malária também será um risco sério, enquanto a temperatura se mantiver quente.

  O que o CICV planeja fazer, uma vez que a ameaça de inundações tenha terminado e as pessoas comecem a voltar para suas casas?  

A reforma ou a reconstrução de um sistema de saúde para milhões de pessoas nas áreas mais pobres do Paquistão é algo que ocupará o governo e a comunidade internacional não somente por meses, mas provavelmente por anos. Haverá um desenvolvimento enorme e um esforço de reconstrução por parte do governo e a comunidade internacional, mas como o CICV tem pouca experiência nessa área, realmente essa não é nossa prioridade. Até onde corresponde ao CICV, muito do que fazemos agora determinará o que faremos nos próximos meses.

Portanto, continuaremos ajudando o Cre scente Vermelho Paquistanês? Com certeza. Pretendemos continuar ajudando as comunidades afetadas pela violência armada e pelas enchentes a melhorarem seus sistemas de abastecimento de água? Com certeza. Mas também planejamos ajudar as pessoas a recuperarem seus meios de subsistência e recuperarem sua autonomia, em vez de dependerem da entrega de alimentos. Faremos isso com a distribuição oportuna de sementes, fertilizantes e ferramentas para que as pessoas que normalmente tiram seu sustento da agricultura possam se recuperar o mais rápido possível.

Tentar qualquer outra coisa seria exceder nosso mandato e ir além do que, de fato, somos capazes de fazer. E devo dizer mais uma vez que nosso foco é duplo: primeiro, apoiar nossos colegas do Crescente Vermelho Paquistanês e sua rede de 100 mil voluntários e, segundo, concentrar nossas atividades nas áreas do país onde estamos trabalhando há décadas em prol das vítimas do conflito.