Pessoas Desaparecidas - Acabar com o Silêncio

30 outubro 2017
Pessoas Desaparecidas - Acabar com o Silêncio
Para Lorenzo Caraffi, acabar com o silêncio em torno do tema de pessoas desaparecidas é um primeiro passo para que cada vez menos famílias tenham de viver com a ausência. Foto: Bruno Spada/CICV

Os dados apresentados pela 11ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública que fazem parte de pesquisa encomendada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) sobre pessoas desaparecidas no Brasil são inequívocos e corroboram as evidências empíricas: o desaparecimento de entes queridos é uma triste realidade para milhares de famílias no país. O levantamento aponta 71.796 casos de desaparecimento reportados em 2016 (isso sem contabilizar dados de cinco unidades federativas). A importante e inédita série histórica apresentada no Anuário aponta que entre 2006 e 2016 foram registrados 693.076 casos de desaparecimento no Brasil (apesar do significativo número de unidades federativas com informações indisponíveis). Além desses, faz-se importante mencionar também a pesquisa de opinião produzida pelo FBSP/Datafolha para a campanha Instinto de Vida que aponta que 23,8 milhões de brasileiros possuem algum amigo, conhecido ou familiar desaparecido .

Para o CICV, "pessoas desaparecidas" são todos os indivíduos cujo paradeiro é desconhecido pelas suas famílias ou que foram dados como desaparecidos, segundo fontes fidedignas, devido a um conflito armado, violência interna, desastre natural ou outras crises humanitárias. De fato, essa definição vai além do conceito de "desaparecimento forçado", tal como foi adotado pela Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado (2006) e o Estatuto de Roma (1998) . Esses instrumentos restringem a definição às pessoas que desapareceram após qualquer forma de privação de liberdade praticada pelo Estado ou com sua autorização, apoio ou aquiescência, ao passo que o CICV defende uma interpretação mais ampla: as famílias de todos os desaparecidos sofrem, sejam quais forem os motivos ou as circunstâncias do desaparecimento. Portanto, estas famílias têm o direito de saber a sorte e o paradeiro dos seus entes queridos – algo reconhecido pelo Direito Internacional Humanitário e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos .

A pessoa que desaparece é a primeira vítima. Mas essa tragédia também afeta muitas outras. Os familiares de uma pessoa desaparecida geralmente passam por enorme sofrimento até saber a sorte e o paradeiro do seu ente querido – se é que chegam a saber. Muitas vezes, o seu pesar pela perda é agravado por outras dificuldades, como privações econômicas e trâmites burocráticos. As famílias das pessoas desaparecidas têm necessidades especificas, reconhecidas pela Conferência Internacional de Especialistas Governamentais e Não Governamentais sobre os Desaparecidos de 2003 . Essas incluem as necessidades de saber a sorte e o paradeiro do seu ente querido, de realizar rituais de recordação, de receber apoio econômico, psicológico e psicossocial, de que o seu sofrimento seja reconhecido e de justiça. Enquanto essas necessidades não forem satisfeitas, as famílias muito dificilmente conseguem reconstruir as suas vidas.

Além disso, o desaparecimento também afeta o entorno social da pessoa desaparecida e de seus familiares. Com frequência o desaparecimento leva à estigmatização e ao isolamento das famílias, uma vez que membros da comunidade, com medo de se verem vinculados à pessoa desaparecida, afastam-se. O desaparecimento pode servir para reavivar preconceitos e tensões e provocar feridas por desconfianças e mal-entendidos que prejudicam as relações sociais - às vezes por décadas.

Segundo o Direito Internacional, os Estados têm a obrigação de prevenir que as pessoas desapareçam; precisam buscar e localizar as pessoas desaparecidas e adotar uma resposta completa e integral em relação às necessidades dos familiares . Não é uma tarefa fácil, mas é fundamental que as autoridades brasileiras e outras organizações aumentem os seus esforços para aliviar o sofrimento de tantas pessoas e tratar um dos problemas humanitários mais complexos, desafiantes e subnotificados no mundo hoje.

Atualmente, o Brasil não possui política pública especifica para tratar do tema das pessoas desaparecidas e seus familiares. Infelizmente, o país também não conta com um registro único de pessoas desaparecidas. Nesse sentido, há de se fazer uma ressalva: os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apesar de sua inestimável importância, refletem parcialmente a magnitude real do problema. Esses não incluem, por exemplo, casos de pessoas reportadas como desaparecidas que foram localizadas. Além disso, sabe-se que há um significativo sub-registro de casos em países nos quais não existem mecanismos nacionais para coordenar esforços destinados a esclarecer a sorte e o paradeiro das pessoas desaparecidas e a responder às necessidades das suas famílias, como o Brasil. Isso ocorre, entre outros motivos, porque os familiares não sabem claramente a quem reportar o desaparecimento do seu ente querido ou porque não acreditam que as instituições empreenderão esforços suficientes e necessários para a busca.

Em meio a este cenário de tantas incertezas, uma coisa é certa: acabar com o silêncio em torno do tema é um primeiro passo para que cada vez menos famílias tenham de viver com a ausência.

Artigo do chefe da delegação do CICV para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, Lorenzo Caraffi, para a 11ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.