Quênia: os inimigos se unem pelos animais
06-06-2008 Reportagem
Piers Simpkin, especialista regional em rebanho a serviço do CICV em Nairóbi, conversa com Iolanda Jaquemet sobre o estranho vírus do camelo, sobre como um vírus bovino pode unir arquiinimigos em um mesmo lugar e como ajudar os pastores que estão em perigo por toda a África.
“É uma doença de camelos que mata a maioria dos animais produtivos: as fêmeas que produzem mais leite e os machos mais fortes. Eles morrem por insuficiência cardíaca, mas a causa é um mistério. Já provocou muitas mortes e é algo que temos que prestar atenção.”
No escritório da delegação do CICV em Nairóbi, Piers Simpkin, especialista regional em rebanhos e em ciência ambiental, cuida de muitos assuntos. O misterioso vírus do camelo, que, nos últimos quatro anos, vem chegando da região de Afar da Etiópia para a Somália, norte do Quênia e, talvez, Sudão.
É um problema sério: a Somália, atormentada por um conflito, possui a maior população de camelos no mundo. E no norte do Quênia, o leite de camelo é a principal fonte alimentícia dos jovens pastores, principalmente durante as estações secas. “Um camelo fornece leite por oito ou nove meses ou mais, caso haja seca, e por outro lado, a vaca produz somente quatro meses neste tipo de ambiente,” diz Piers Simpkin.
O modo de vida pastoril está sob ameaça
Em toda a África, o modo de vida pastoril vem sendo ameaçado de forma cada vez mais forte, com os governos sentindo-se desafiados pela própria negligência nas fronteiras, enquanto os nômades são marginalizados no cenário de decisão política. Os conflitos entre os grupos de pastores e agricultores por campos definhados e fontes de água são as raízes de muitos conflitos sangrentos incluindo Darfur, Chade e Somália. É por isto, diz Piers Simpkin, “que o CICV não está olhando para as emergências, mas sim para o âmbito geral”.
Além dos programas de vacinação e tratamento de massa (quase um milhão de animais em Darfur, em 2007), o especialista em rebanhos e seus colegas lutam para “criar uma competência básica, mais profissional, nos vilarejos”. O eixo de apoio é o trabalhador de saúde animal, que é escolhido pela comunidade, e que recebe um mês de treinamento do CICV – com um curso de atualização uma vez por ano – e um kit veterinário que contém remédios básicos, mas de alta qualidade.
Em lugares que estão muito distantes de um veterinário, isto pode fazer a diferença entre a vida e a mo rte dos animais – e, conseqüentemente, pode fazer toda a diferença no meio de vida de seus donos. Mais de 200 trabalhadores de saúde animal foram treinados em Darfur, 150 no Chade, e vários em Afar (Etiópia e Somália) e no norte do Quênia. Os trabalhadores de saúde também aprendem conhecimentos básicos de negócios, porque eles devem vender os remédios para a comunidade com uma pequena margem de lucro para que o estoque possa ser reposto e, assim assegurar um projeto sustentável. No entanto, mais uma vez o maior problema está em conseguir organizar um reabastecimento de remédios sustentável.
‘Cupons veterinários’ para as famílias vulneráveis
É por isso que, no norte do Quênia, o CICV distribui ‘ cupons veterinários’ para as famílias vulneráveis atingidas pelo conflito, como as que são chefiadas por mulheres cujos rebanhos pequenos (menos de 50 cabras) são insuficientes para viver. “Essas pessoas recebem gratuitamente um controle parasitário para seus rebanhos durante a seca, época em que os animais estão sob muito estresse devido aos carrapatos e vermes. Esse controle aumenta as chances de sobrevivência dos animais em 20%”, explica Piers Simpkin.
Em 2008, 1.500 famílias quenianas se beneficiarão deste programa, executado pelos trabalhadores de saúde animal das comunidades. Eles pertencem ao setor privado, e isto assegura a sustentabilidade do projeto.
Outras intervenções incluem a reabilitação de pontos de água existentes e de locais para que os animais possam tomar água, especialmente em lugares muito áridos como a Somália. Os caminhões-pipa estão reservados para a população em períodos de emergência, mas como Piers Simpkin sabe muito bem, “as pessoas sempre compartilham com seus animais.”
Comercialização do rebanho
Além dos problemas de saúde e nutrição animal, uma terceira área de intervenção para o CICV é a comercialização do rebanho. Novamente na Somália, a seca de 2006 fez com que os preços de animais caíssem em um terço – e mesmo com este preço não houve compradores. Ao mesmo tempo, o preço dos cereais subiu, o que piorou as condições do negócio para os criadores.
“O CICV comprou 30 mil cabras e ovelhas por um preço um pouco mais alto que o valor de mercado, e distribuiu a carne para os necessitados através do Crescente Vermelho da Somália”, lembra Piers Simpkin. Uma operação de “desestoque” que ajudou os pobres e apoiou o mercado local.
Atualmente, o misterioso vírus do camelo não é a única preocupação para os especialistas em rebanhos na África. Também há o PPR (do francês " peste des petits ruminants " ), um vírus que está atacando as cabras do sul do Sudão. Por causa do comércio e roubo de rebanhos, este vírus agora ameaça o amplo Nordeste Africano.
“Este vírus pode matar 80% de um rebanho. Para mantê-lo controlado, é preciso uma estratégia trans-fronteiriça. Uma política somente em nível nacional é simplesmente insuficiente”, diz o especialista do CICV.
Há precedentes interessantes. A gafeira, uma doença bovina, foi erradicada na África e em outros lugares através da cooperação entre fronteiras. Paradoxalmente, se o rebanho estimula conflitos, diz Piers Simpkin, “as doenças do rebanho podem ajudar a superar as diferenças”.
Ele relembra, nos anos 1990, no ápice do conflito entre o norte e o sul do Sudão, como os representantes de ambos os lados se encontrararam para discutir as formas de lutar contra a gafeira. Isto também acontece em Darfur, onde dois veterinários do governo puderam acessar recentemente algumas áreas mantidas pela oposição, a fim de verificar o programa de vacinação.
“Tanto os pastores como os agricultores de Darfur têm rebanhos”, ressalta Piers Simpkin. E ambos os lados do conflito têm interesse em evitar que as doenças de animais se espalhem, sem importar suas diferenças políticas.