Quênia: um especialista do CICV ajuda na identificação das vítimas da violência
27-06-2008
Depois da violência pós-eleitoral que atingiu o Quênia no início de 2008, o Ministério de Saúde Queniano solicitou ao CICV uma ajuda para as equipes forenses locais na identificação dos corpos em avançado estado de decomposição ou queimados. O CICV enviou três de seus médicos forenses para o Quênia entre janeiro e junho de 2008. Nicole Engelbrecht, do CICV, nos relata de Nairóbi.
“Está claro para mim que meu trabalho é ajudar as pessoas. Tendo isso em mente, posso superar o estresse. É como qualquer outro emprego, não tenho pesadelos”, diz Andrés Patiño Umaña, de 39 anos, médico forense colombiano que está trabalhando para o CICV no Quênia.
“Estamos procurando os mortos para os vivos. Sempre há uma mãe, irmão ou esposa atrás de cada corpo.”
O país do leste africano considerado uma ilha de estabilidade na região sofreu uma trágica crise humanitária após as eleições gerais no final de dezembro do ano passado. Os protestos políticos se transformaram e m violência tribal, deslocando mais de 300 mil pessoas e matando aproximadamente 1,2 mil. Os parentes puderam identificar a maioria dos restos mortais. Mas, para dezenas de pessoas, esta tarefa provou ser desafiante porque ninguém reivindicou os corpos, já que as famílias foram deslocadas ou porque os corpos não estavam em condições de reconhecimento porque estavam mutilados ou queimados.
“Se a identificação visual de um corpo não for mais possível, existem vários outros caminhos para descobrir a identidade da pessoa”, explica Andrés Patiño. “O recurso do DNA é a última opção. Primeiro, temos de confiar em outras técnicas forenses de identificação.” Um especialista forense pode estimar a idade e o sexo de alguém de acordo com o desenvolvimento do esqueleto e a morfologia. Examina cuidadosamente os ossos por meio de raios-x ou com a ajuda de um patologista que faça uma autópsia.
O esqueleto revela muita informação
" Quanto mais velho for um corpo, mais ‘usado’ é, mais fraco fica, e mais mudanças podemos ver”, diz Andrés Patiño. “Existem alterações ósseas associadas à idade, como artrite, que fazem com que as ligações entre os ossos sejam menos flexíveis. A estrutura óssea de uma pessoa pode também dar uma dica sobre certas profissões. Um camponês ou um ferreiro tem um esqueleto diferente de um professor escolar.”
“Outro elemento importante para o processo de identificação é o dente. Os dentes, geralmente, sobrevivem ao fogo e revelam hábitos como fumar e beber café. Para os jovens até 18 anos, suas idades podem ser determinadas com exatidão, com uma variação de 1 a 2 anos.”
A pedido do Ministério de Saúde Queniano, o especialista do CICV visitou 12 hospitais e necrotérios nas áreas atingidas pela violência e ajudou as equipes forenses locais. Além de ajudar na identificação de corpos em estado de deco mposição ou queimados, Andrés Patiño também compartilhou seus conhecimentos sobre como tratar dos restos mortais.
“O primeiro passo para a identificação de um corpo é manter um registro de informações básicas como sexo, altura, idade, traços físicos e uma descrição dos pertences pessoais”, explica. Esta informação é incluída na autópsia. O corpo deve ser etiquetado com um número correspondente ao da autópsia. Se possível devem ser tomadas fotos do corpo.”
Ajudando a tarefa para os vivos
“Queremos evitar que um pai tenha de procurar pelo filho ou que um marido busque pela esposa em uma pilha de corpos. Para quem não está preparado, a imagem de um necrotério cheio de corpos pode ser uma experiência chocante. O manuseio correto dos corpos e o uso das técnicas forenses fazem com que o processo seja muito mais fácil para todos, inclusive para as famílias”, disse Patiño.
O correto manuseio dos corpos inclui o uso de bolsas e refrigeração. Sem a refrigeração, a decomposição avança com muito mais rapidez, especialmente nos climas quentes. Dentro de 12 a 48 horas, o reconhecimento facial já não é possível. O CICV e a Sociedade da Cruz Vermelha do Quênia doaram refrigeradores para os necrotérios de três cidades para ajudar na preservação dos corpos até que as famílias os procurem.
Trabalhando em parceria com as equipes forenses quenianas, Andrés Patiño conseguiu reunir informação post mortem de quase todas as vítimas da violência pós-eleições que ainda não foram procuradas ou identificadas. As equipes também tomaram amostras de DNA e as entregaram ao Laboratório Químico do governo para análise. Agora as informações disponíveis podem ser comparadas com as informações dadas pelos parentes que estão à procura de um desapa recido. " Estamos tentando aliviar o sofrimento”, diz. “É uma tortura para uma mãe pensar no seu filho desaparecido e não saber se ele está com fome ou doente. E descobrir que está morto é terrível, mas também traz um pouco de alívio e paz.”
A dor de não saber o paradeiro de um parente não é somente emocional. Enquanto uma pessoa não seja oficialmente declarada morta, os familiares não podem seguir adiante, vender propriedades, casar novamente, receber uma pensão ou simplesmente cumprir os rituais fúnebres.
‘Os mortos podem esperar’
“Em tempos de desastres ou de violência não esperada com um grande número de mortes, a atitude que parece prevalecer é a de que os mortos podem esperar”, diz Caroline Rouvroy, coordenadora de proteção do CICV no Quênia. “As famílias, no entanto, têm o direito de saber, o quanto antes, o que aconteceu com seus entes queridos. Rastrear os restos mortais é, portanto, tão importante para nós como qualquer outra tarefa humanitária.”
O restabelecimento de laços familiares é parte da missão do CICV de proteger e ajudar as vítimas de conflitos e outros tipos de violência. Isto inclui os mortos. Em 2003, a organização fundou um departamento forense que oferece ajuda e treinamento para os especialistas de vários países. Além de Andrés Patiño, dois outros especialistas forenses realizaram missões de ajuda no Quênia desde o início da violência. O CICV convidou dois especialistas forenses quenianos para um curso sobre DNA e genética em Preston, no Reino Unido. Com a iniciativa do Ministério de Saúde, o CICV oferecerá treinamento para os principais atores no processo de identificação, tais como patologistas, polícia, magistrados e juízes, em Nairóbi em novembro.
“As pessoas pensam que os médicos forenses gostam de estar entre os mortos”, afirma Patiño. “Isto não é verdade. Estamos procurando os mortos para os vivos. Sempre há uma mãe, irmão ou esposa atrás de cada corpo.”