Causas e prevenção do deslocamento interno: a perspectiva do CICV

23-10-2009 Declaração oficial

Declaração de Jakob Kellenberger, presidente do CICV. Reunião Especial sobre Pessoas Refugiadas, que Retornam e Deslocadas Internamente na África, Kampala, Uganda, 23 de outubro de 2009.

Sr. Presidente,

Vossas Excelências,

Senhoras e Senhores,

Estamos reunidos hoje para compartilhar não só nossos pontos de vista e experiências de um problema que, de um modo ou de outro, diz respeito a todos nós aqui presentes, mas também para oferecer a estrutura para uma solução desse problema.

A adoção do primeiro tratado internacional para a proteção e assistência aos deslocados internos é de fato uma conquista significativa e a União Africana deve ser elogiada por isso. Reflexo de uma longa história de cooperação entre as nossas respectivas organizações, o CICV esteve envolvido no processo de elaboração desde o início; por isso, é com grande prazer que dirijo algumas palavras a esse prezado público no dia em que oficialmente é concretizado o processo.

Pediram-me para limitar minhas observações das causas e prevenção do deslocamento interno, no entanto me concentrarei mais no segundo tópico.

Vale repetir que o deslocamento interno constitui talvez um dos maiores desafios humanitários mais intimidadores da atualidade. É difícil, senão impossível, medir o impacto sobre muitos milhões de homens, mulheres e crianças deslocados, além de inúmeras famílias acolhedoras e as comunidades residentes. Embora seja notória a dificuldade de conseguir números, ninguém negaria que a África é o continente mais atingido, em termos de número de deslocados internos.

As causas do deslocamento - na África, como em outras partes do mundo - são, evidentemente, múltiplas e complexas. Além de desastres naturais ou o deslocamento induzido pelo desenvolvimento, na maioria das vezes as causas do de slocamento são aquelas que têm provocado, ou pelo menos contribuído, com os conflitos armados ou situações de violência. Pobreza, efeitos das mudanças climáticas, escassez de recursos, instabilidade política e má gestão, e sistemas de justiça podem ser catalisadores de todas os deslocamentos provocados pelos conflitos. Estes mesmos fatores muitas vezes dificultam o fim do deslocamento e fazem com que a tarefa de reconstruir as vidas e restabelecer os meios de subsistência dos afetados pelo deslocamento seja ainda mais difícil.

Muitos de vocês que estão aqui hoje, oriundos de países que em alguns casos sofreram muitos anos de conflito armado e deslocamento, conhecem bem as causas e as consequências, por vezes opressivas, do deslocamento interno. O presidente Koroma, com quem tenho a honra de dividir o palco aqui, conhece muito bem o impacto devastador e as consequências a longo prazo de um conflito armado que de uma hora para outra expulsou muitas pessoas de seu país, muitas delas mais de uma vez. Ao mesmo tempo, os conflitos armados e as situações de violência nos países vizinhos da Libéria, Guiné e até da Costa do Marfim criaram uma situação muito complexa de deslocamento em toda a sub-região, tanto interna com também fora das fronteiras. Inúmeras pessoas perderam suas casas e seus meios de subsistência, famílias foram separadas e comunidades destruídas. Os efeitos desses complexos movimentos populacionais e o sofrimento imensurável que os acompanham, no geral, persistem por muito tempo após o fim da violência.

Uma das principais causas do deslocamento forçado em conflitos armados, sem dúvida, ainda são as violações do Direito Internacional Humanitário - e este é o lugar no qual o CICV, que graças ao seu mandato, desempenha o papel específico de lembrar todas as partes em um conflito de suas obrigações legais.

Disposições do Direito Humanitário de particular relevância incluem a proibição de atacar civis ou bens de civis , de realizar ataques indiscriminados, de submeter civis à fome como método de guerra, de destruir bens indispensáveis a sua sobrevivência e de realizar represálias contra civis e bens civis. As violações destas regras pelas partes em conflito, no geral induzem os civis a fugirem de suas casas.

A lei também proíbe expressamente qualquer uma das partes em um conflito armado a forçar os civis a deixarem suas casas e oferece a mesma proteção de deslocados internos contra os efeitos das hostilidades e a mesma assistência que o resto da população civil. Os Estados e outras partes em conflitos são obrigados a permitir a livre passagem de suprimentos e da ajuda necessária para a sobrevivência de todos os civis, independente de terem sido deslocados ou não.

É lógico, portanto, que se estas leis fossem mais respeitadas, o deslocamento interno poderia, em grande medida, ser impedido de acontecer. A prevenção é - sem dúvida - melhor que a cura. Contudo, reforçar a garantia do respeito do Direito Internacional Humanitário é um desafio constante.

A nova convenção de deslocados internos contém várias disposições importantes do Direito Internacional Humanitário, que vinculam atores estatais e não-estatais. Dentre elas estão não apenas a obrigação de proteger os deslocados internos e de prestar-lhes assistência, como também normas de garantia de que o deslocamento forçado seja impedido e normas que proíbem claramente o deslocamento arbitrário, em violação ao Direito Humanitário.

De fato, a convenção vai além dos tratados internacionais do Direito Humanitário, em alguns aspectos, por exemplo, as regras contêm o retorno seguro e voluntário, e o acesso à indenização ou outras formas de compensação. É claro que isto é muito positivo em termos de reforço da proteção dos deslocados internos.

A convenção estabelece um quadro sólido para r eforçar a proteção e assistência dos deslocados internos na África. O desafio crucial agora é o mesmo que encara o Direito Internacional Humanitário no geral: garantir que uma vez que a convenção seja assinada e ratificada pelo maior número possível de Estados, ela seja aplicada e respeitada de verdade. Os Estados agora devem tomar medidas concretas para aplicar a convenção em sua própria legislação nacional e nos sistemas de regulação, e desenvolver planos de ação para resolver questões de deslocamento.

O CICV, por sua vez, está pronto para ajudar os Estados na execução de suas obrigações relacionadas com o deslocamento, segundo o Direito Internacional Humanitário. Este é um aspecto crucial da prevenção, bem como a proteção das populações vulneráveis uma vez que o deslocamento ocorre. Mas não é o único.

Impedir que o deslocamento aconteça, originalmente, muitas vezes tem um peso muito importante nas escolhas operacionais e estratégias do CICV. É por isso que, em Darfur e na República Democrática do Congo, Paquistão e Filipinas, e em muitos outros contextos, o CICV se esforça para impedir mais deslocamentos, em parte proporcionando uma ampla gama de serviços para a população em áreas de risco.

O CICV tem como objetivo promover a autonomia entre as comunidades vulneráveis para ajudar a evitar o deslocamento e, quando necessário, para aumentar a capacidade da comunidade acolhedora de deslocados internos, reforçando os mecanismos de enfrentamento. A organização faz isso de várias maneiras, por exemplo, fornece crédito, sementes e ferramentas agrícolas, restabelece sistemas de água existentes e presta serviços veterinários.

Quando o deslocamento ocorre, o CICV procura responder às necessidades de ambas as populações deslocadas e residentes que muitas vezes acolhe os deslocados, bem como as dos deslocados que retornam a seus lugares de origem. Muitas vezes, as pessoas que não podem fugir ou que d ecidem permanecer por outras razões, também têm necessidades humanitárias graves. O nível de vulnerabilidade de uma pessoa não pode - ou pelo menos não deveria - ser avaliado apenas com base em sua condição, por exemplo, como um deslocado interno.

Sr. Presidente,

Vossas Excelências,

O CICV presta - e continua prestando - assistência emergencial aos deslocados internos nos campos em circunstâncias excepcionais. Por exemplo, o CICV administrou o campo de Gereida, em Darfur - um dos maiores campos de deslocados internos no mundo – em um momento em que as restrições de segurança impediam outras organizações humanitárias de operarem na área. A organização também iniciou a criação dos campos de Abu Shok e de Kassab em Darfur em 2004, quando parecia não haver outra opção senão fazê-lo. Lá, o objetivo desde o início era o de evitar a dependência a longo prazo e facilitar o retorno assim que as condições permitissem, mediante ajuda adequada, mas sem arriscar criar obstáculos ao regresso.

Na verdade, na maioria dos casos, muitos deslocados que vivem em campos em geral manifestam interesse de voltar para casa - muitas vezes para recuperar a terra ou a propriedade e retomar suas vidas normais - contanto que as condições de segurança sejam favoráveis para assim o fazer. A assistência deve estar ligada às boas estratégias de saída e facilitação do regresso, de modo a aumentar a capacidade das pessoas para se recuperarem, embora deva reconhecer que a recuperação só pode ocorrer se as necessidades básicas forem atendidas.

Por fim, o plano falhou. Até o verão de 2004, o fluxo de organizações humanitárias no campo de Abu Shok e de alguns outros campos de Darfur resultou em um nível artificialmente elevado de socorro que não refletiu a realidade da vida rural. Além disso, a situação da segurança em regiões de origem dos deslocados não era propícia para retornar. Estes campos se tornaram exten sões semipermanentes das cidades próximas de onde foram construídos. Ao mesmo tempo, o CICV realizou inspeções em áreas rurais que mostraram uma necessidade urgente de ajuda alimentar nas aldeias, como resultado de colheitas total ou parcialmente mal-sucedidas. Isto levou o CICV a mudar seu foco para as zonas rurais, com o objetivo de ajudar os moradores a permanecerem em suas regiões de origem e evitar um êxodo para os campos.

Há outros exemplos de medidas que o CICV tomou em campos no início de uma nova emergência, durante a qual há um fluxo em grande escala de deslocados e outras organizações humanitárias não estavam em condições de prestar socorro de forma adequada e rápida. Este foi o caso dos campos de Kibati, perto da cidade de Kivu do Norte, em Goma, em outubro de 2008, quando o CICV forneceu rações alimentares suficientes para um curto prazo, gêneros não-alimentícios e abastecimento de água, e - para dar um exemplo fora da África -, no noroeste do Paquistão, depois dos violentos confrontos que causaram o deslocamento em massa nas zonas praticamente inacessíveis. Nesse último exemplo, a partir de maio de 2009, o CICV e o Crescente Vermelho Paquistanês administraram um grande campo de deslocados em Swabi. O CICV também apoiou vários outros campos administrados pelo Crescente Vermelho. Ao mesmo tempo, forneceu alimentos e gêneros não-alimentícios aos deslocados internos hospedados com famílias acolhedoras, bem como às próprias famílias acolhedoras, sobretudo nas áreas de conflito em que nenhuma outra organização humanitária estava presente.

A experiência mostra que em muitos casos a criação de campos novos gera novos problemas complexos de resolver e que podem agravar a vulnerabilidade e os riscos aos quais os deslocados estão expostos. Ao mesmo tempo em que o CICV apoia os campos como uma medida de último recurso, quando não há alternativa viável, a organização está determinada a primeiro esgotam todos os meios possíveis de evitar que isso seja necessário.

O desafio da prevenção também se aplica à reincidência de deslocamentos uma vez que os deslocados tenham retornado a seus lugares de origem, se assentado localmente na comunidade que os acolheu ou se deslocado para outro lugar. Para isso, as condições devem ser seguras, voluntárias e dignas. Isto inclui o reconhecimento por parte das autoridades do direito à propriedade, aos serviços públicos e, por vezes, à compensação. Também pode incluir incentivar as autoridades pertinentes a limpar os terrenos contaminados com minas e resíduos explosivos de guerra, além de renunciar a tais armas e realizar programas de conscientização sobre o risco das minas para alertar as pessoas dos perigos. Como no exemplo do Kivu do Norte, a resposta do CICV pode incluir oferecer meios de subsistência apoiar programas que visem a aumentar a segurança econômica das pessoas que retornam a seus lugares de origem e dos residentes, garantindo o acesso a um abastecimento de água adequado e seguro e o acesso aos cuidados de saúde. Uganda também é um bom exemplo. Desde 2006, os 1,7 milhões de deslocados internos do país foram gradualmente voltando a suas aldeias de origem para retomar suas vidas normais. O CICV adaptou devidamente sua abordagem: de assistência emergencial em campos para uma ajuda às famílias para que essas pudessem reconstruir suas vidas por meio de uma ampla variedade de programas de apoio.

Quebrar o ciclo de deslocamento oferecendo soluções duradouras para acabar com ele é tão desafiante quanto importante. De novo, a experiência da Serra Leoa e seus vizinhos na sub-região, ilustram a complexidade em responder a este desafio. O simples dato de saber quantos deslocados existem após uma década de conflito, durante o qual houve sempre um grande número de deslocados internos não registrados já é difícil, quando não impossível. Alguns podem não querer voltar, por diversas razões. Definir em que ponto uma zona é realmente " segura " muitas vezes não é fácil também. Outro motivo de preocupação pode ser a falta de abrigo e serviços básicos nas áreas para onde retornam, que pode induzir ao surgimento de aglomerados urbanos mais uma vez. Há um frequente debate para saber até que ponto um conflito está realmente terminado e em que ponto a fase de emergência leva para a fase de desenvolvimento. Em muitos casos, a diferença entre o socorro e a recuperação continua a ser problemática.

Os desafios da eficaz resposta humanitária e construção da paz são claramente interligados. As situações de deslocamentos internos não podem ser resolvidas de forma duradoura até que os dois temas sejam abordados. Um problema alimenta outro em um círculo vicioso. Sem compromisso de longo prazo para combater as causas profundas do conflito, há um risco de padrões repetidos de deslocamentos internos e crises humanitárias, e a menos que os deslocados estejam efetivamente estabilizados com proteção e assistência adequadas, pode haver pouca esperança de alcançar uma paz sustentável.

Enfrentar o problema dos deslocados internos em todas as suas dimensões exige um enorme esforço concertado, tanto a nível estatal como internacional. A convenção da União Africana para a proteção e assistência dos deslocados é um passo muito positivo no sentido de resolver o problema do deslocamento interno no continente. O CICV, por sua vez, está disposto a desempenhar seu papel específico e pede a todos os Estados e atores não-estatais interessados a cumprirem com suas responsabilidades no âmbito da Convenção e assegurarem seu sucesso.