As crianças estavam quietas - bastidores da evacuação de Aleppo

27 abril 2017

Évacuation des civils de la ville syrienne d'Alep

Entre 15 e 22 de dezembro de 2016, uma das maiores e mais complexas operações de evacuação de civis na história recente ocorreu na cidade síria de Aleppo. As partes beligerantes acordaram que se deveria solicitar ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), como organização neutra e imparcial, que facilitasse a evacuação de milhares de pessoas do leste da cidade. Aqui, por primeira vez, contamos a história por detrás desses dias tensos e perigosos de dezembro.

Contexto

O bombardeio era ininterrupto. O sofrimento incomensurável. A batalha por Aleppo arrancou o coração da cidade e lhe extinguiu a alma. A cidade dividiu-se entre leste e oeste, mas as linhas de frente eram uma complexa colcha de retalhos. Cercos dentro de cercos.

Depois de quatro anos de combates implacáveis, milhares de pessoas morreram e centenas de milhares foram obrigadas a fugir das suas casas. Nesse momento, tudo se reduzia a uns poucos quilômetros no leste de Aleppo, à medida que as forças governamentais avançavam. Centenas, talvez milhares de vidas estavam em perigo, a menos que ocorresse uma evacuação imediata do leste de Aleppo.

O CICV vinha fazendo um apelo para uma pausa humanitária de modo a criar um espaço que permitisse a entrada da ajuda. Por fim, as negociações entre os dois lados, que foram facilitadas no terreno pelo CICV, obtiveram resultados. Haveria una evacuação. Seria pedida ao CICV, como intermediário neutro, que a organizasse, junto com o Crescente Vermelho Árabe Sírio.

Ao amanhecer

"Até o último momento, não estava claro se a evacuação iria acontecer", comentou a chefe do CICV na Síria, Marianne Gasser. "Ao amanhecer, os combates ainda persistiam. A situação era extremamente tensa. Então, de repente, conseguimos a luz verde." Era uma quinta-feira, 15 de dezembro.

Com a temperatura quase em zero grau, um único veículo do CICV avançou lentamente, com Marianne Gasser, dois colegas do CICV e três do Crescente Vermelho Árabe Sírio a bordo. Já haviam passado seis meses desde a última vez que as equipes do CICV haviam estado em Aleppo. Iam agora rumo ao desconhecido.

Syrie, Alep, décembre 2016

 

Era um mar de escombros, prédios colapsados e carros queimados.

"Era um mar de escombros, prédios colapsados e carros queimados. Havia o perigo sempre presente das minas e dos artefatos não detonados. Tínhamos que sair do carro para acenar a bandeira, assim todo mundo sabia quem éramos. Alguns minutos depois, fomos forçados a parar. A estrada estava intransponível. Foi necessário uma escavadeira para retirar os escombros. Perdemos uma hora mais."

Com o caminho desimpedido, o veículo finalmente entrou no leste de Aleppo.

As crianças

"Foi um dos momentos mais comoventes que já vi. Milhares de pessoas - principalmente mulheres e crianças - esperando para serem evacuadas. Muitas estavam com as roupas em frangalhos, levando bolsas, malas e mochilas velhas. Olhares assustados. Exaustão, medo, ansiedade e esperança vislumbrados em seus rostos. E, ao redor, esta imensa destruição."

"Quando descemos do carro, mal conseguíamos nos mexer. Estava cheio de gente. Como essas pessoas conseguiram viver tanto tempo com tantas privações? Parecia o fim do mundo."

Enquanto as equipes do CICV e do Crescente Vermelho Árabe Sírio avaliavam a situação, vinte ônibus verdes e dez ambulâncias foram enviados para o local, prontos para transportar os moradores que aguardavam. Três minas anti-tanques foram removidas da estrada por militares russos.

La file des bus qui vont servir à l'évacuation des civils de la ville d'Alep

"Havia pessoas em cadeiras de rodas. Uma delas somente tinha três rodas, tendo de ser meio empurrada e meio arrastada pelo chão partido. Era desolador. Em seguida começou a chover."

"Havia muitas crianças. Muitas com menos de dez anos de idade. Quase nenhuma tinha roupa de frio. Estavam quietas, nenhum barulho, nenhum sorriso. Nem mesmo choravam. Rostos sem expressão."

Havia muitas crianças. Muitas com menos de dez anos de idade. Quase nenhuma tinha roupa de frio. Estavam quietas, nenhum barulho, nenhum sorriso. Nem mesmo choravam. Rostos sem expressão.

Mais tarde, a coordenadora de saúde do CICV, Avril Patterson, que também estava em Aleppo, percebeu o mesmo.

"Havia muitas crianças. E muitas delas estavam silenciosas. Isso não é normal. Deveriam estar gritando, se queixando da fome ou do frio. Não se comportavam como crianças. E se notava a diferença nas pessoas, este olhar dos que passaram por um cerco. Se podia ver na palidez, na cor da pele", disse.

Primeiro comboio

Pelas 14h30, sob os holofotes de cinco canais de televisão, os vinte ônibus e as treze ambulâncias (três delas estavam dentro da cidade) saíram com bastante dificuldade do leste de Aleppo.

 

Em uma ponte, nos arredores do enclave, tropas russas realizaram uma revista rápida das pessoas que saíam, que consistiu em nada mais do que olhar para dentro dos ônibus.

"A maioria das pessoas eram mulheres, crianças e idosos. Não estavam necessariamente desnutridos, mas havia uma evidente desesperança em seus olhos", comentou outro funcionário do CICV, Ahmed Zaroug.

Tentava imaginar esta senhora no leste de Aleppo. Que estaria pensando?

"Tentava imaginar esta senhora no leste de Aleppo. Que estaria pensando? Toda a sua vida em casa, em uma situação normal. E agora tinha de partir, levando todos os seus pertences em uma pequena bolsa. Mas não era apenas ela - eram milhares de pessoas".

No primeiro comboio, saíram 1013 pessoas, incluindo 28 feridos, 678 adultos e 299 crianças. Acompanhadas pelas equipes do CICV e do Crescente Vermelho Árabe Sírio, elas fariam a viagem de trinta minutos à zona rural do oeste de Aleppo, controlada pela oposição, e, depois, talvez, até Idleb.

Apesar das tensões e preocupações iniciais, o primeiro comboio foi um sucesso. Pelas 16h20, o segundo comboio estava a caminho. O ritmo se acelerou.

À medida que cada comboio chegava ao enclave, grandes multidões rodeavam os ônibus. Parecia que todos queriam ir embora, com medo que o cessar fogo acabasse a qualquer momento e os combates recomeçassem.

O CICV e o Crescente Vermelho Árabe Sírio tentavam administrar a multidão da melhor maneira possível. Havia a preocupação de que a situação poderia ficar fora de controle. Foi tomada a decisão de seguir trabalhando toda a noite. No frio intenso, os comboios continuavam se movendo.

Volontaires du Croissant-Rouge syrien durant l'évacuation des civils de la ville d'Alep, Syrie

Suspensão

No segundo dia, doze comboios haviam completado o trajeto. Carros particulares também estavam saindo da cidade. Oito mil pessoas haviam partido e estavam a caminho do território controlado pela oposição.

Porém, em algum momento, tudo ficou incerto. O décimo-terceiro comboio foi repentinamente impedido de sair.

"Ficou evidente que as questões relativas às evacuações simultâneas das cidades de Foua e Kefraya estavam causando o problema", explicou Gasser.

Os moradores de Foua e Kefraya queriam sair para o território controlado pelo governo, mas foram bloqueados pelos grupos armados de oposição. O CICV não estava envolvido nas evacuações das outras cidades, essas, porém, haviam ficado agora inextricavelmente vinculadas com a de Aleppo.

A noite caiu e centenas de pessoas estavam presas nos ônibus, em terra de ninguém. Foram feitos esforços para fornecer comida e água, bem como acesso a banheiros. Mas a situação não se resolvia.

A tensão aumentou. A interrupção continuou por dois dias. Na tarde do quarto dia, vários ônibus foram atacados e incendiados próximos a Foua e Kefraya. A situação estava ficando cada mais perigosa e complexa. Milhares de vidas pendiam por um fio.

No terreno, era forte a presença de forças russas, sírias e agora iranianas, nas proximidades de Aleppo. Milhares de combatentes da oposição permaneciam no leste de Aleppo.

Negociações foram feitas nos bastidores entre os diferentes lados. No meio do medo, chegou uma notícia positiva em 18 de dezembro. Uma mulher do leste de Aleppo, que estava por dar à luz, teve o seu bebê em uma das ambulâncias do Crescente Vermelho Árabe Sírio. A bebê e a mãe sobreviveram. Elas foram transferidas mais tarde a um dos ônibus quando a operação foi retomada. Nascida em terra de ninguém.

Mas apesar disso, havia o medo real de se toda a operação seria cancelada.

Negociações complexas, envolvendo as partes, continuaram. Quantas pessoas e ônibus poderiam sair de um lugar antes que fosse feita a contrapartida em outro?

Por fim, chegou-se a um novo acordo. Ao redor das 23h30, no domingo 18 de dezembro - quarto dia - os ônibus finalmente voltaram a se mover. A evacuação continuaria durante quatro dias mais. "Foi um alívio incrível que a operação tenha podido ser retomada", afirmou Marianne Gasser.

Sorrisos

Uma enorme multidão se aglomerou no ponto de embarque no leste de Aleppo. Parecia que todos queriam ir embora enquanto podiam. Um comboio atrás de outro deixou o leste de Aleppo.

 Era emocionante ver os rostos das pessoas nos ônibus e carros velhos. Elas sorriam e acenavam. O alívio era visível nos olhos delas.

"Era emocionante ver os rostos das pessoas nos ônibus e carros velhos. Elas sorriam e acenavam. O alívio era visível nos olhos delas", contou Gasser. "Muitas pensavam que morreriam ou ficariam feridas se ficassem no leste de Aleppo e os combates reiniciassem."

Na terça-feira, 21 de dezembro - sétimo dia das evacuações - caía uma neve forte. As temperaturas rondavam -5oc. As condições pioravam. O leste de Aleppo e os escombros foram cobertos por um branco virginal - uma ironia grotesca do horror que escondiam.

Os carros velhos quebravam na saída dessa parte da cidade, os seus ocupantes os empurravam para que andassem de novo. Muitos combatentes estavam partindo nesse momento. Havia um sentido de urgência sob a superfície.

"A nossa prioridade, além de ajudar os mais vulneráveis, era assegurar que os civis estivessem saindo por vontade própria", afirmou Marianne Gasser.

"São comunidades cujos bairros foram devastados pela violência. As famílias vinham buscando, com muitas dificuldades, segurança, comida, assistência à saúde e abrigo. Elas pareciam desesperadas para sair, apesar da dor adicional que isso causaria."

Ainda não terminou

Em uma operação impressionante, que envolveu mais de 100 funcionários do CICV e do Crescente Vermelho Árabe Sírio, trabalhando dia e noite nas circunstâncias mais difíceis, mais de 35 mil pessoas foram evacuadas do leste de Aleppo em oito dias. Além disso, 1,2 mil pessoas foram evacuadas de Foua e Kefraya como parte de um movimento sincronizado. As pessoas de todos os lados tinham a mesma aparência: uma mistura de exaustão, ansiedade e esperança.

"Os civis que escolheram partir devem poder retornar às suas casas assim que quiserem", declarou Gasser. "Um dia, muitos vão querer voltar."

"Mas a triste verdade é que a guerra síria ainda não terminou. Durante os últimos seis anos, vi muito sofrimento nesse lindo país. Crianças menores de seis anos nunca conheceram outra coisa que não seja a guerra nas suas curtas vidas. Vi tantos amanheceres falsos. O CICV e o Crescente Vermelho Árabe Sírio continuarão com o seu trabalho. Apenas espero que os políticos possam encontrar uma solução o quanto antes para este pesadelo em que vivem tantas pessoas."