CICV faz Retrato do Sistema Prisional do Ceará

CICV faz Retrato do Sistema Prisional do Ceará

Relatório 24 março 2022
Balanço Humanitário 2021

O objetivo é contribuir para melhorar as condições de encarceramento do sistema prisional do Estado, com o foco em dois presídios que abrigam grupos em situação de vulnerabilidade

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) busca assegurar às pessoas privadas de liberdade um tratamento humano e condições de detenção dignas, com o devido respeito pelo valor de cada indivíduo, independentemente dos motivos que o levaram a ser detido. Também procuramos aliviar o sofrimento das famílias — particularmente, restabelecendo a comunicação entre as pessoas privadas de liberdade e seus entes queridos.

A abordagem é baseada no contato direto com essas pessoas, fomentando um diálogo construtivo com autoridades penitenciárias e outros atores, a fim de estimular a adoção de medidas que melhorem as condições da população carcerária e promovam o seu bem-estar. Nesse contexto, é fundamental conhecer e entender a realidade desses locais, em cada contexto.

Ter um retrato das necessidades dessa população foi um dos principais trabalhos do CICV no Brasil em 2021. Os focos de ação da área de Detenção foram duas unidades prisionais localizadas no Complexo de Aquiraz, no Ceará, que abrigam populações em situação de especial vulnerabilidade no encarceramento — um presídio feminino e outro que abriga pessoas idosas, pessoas com deficiência e população LGBTQIA+.

"O trabalho que o CICV realiza com pessoas privadas de liberdade em todo o mundo não é ainda muito conhecido no Brasil; por isso, começamos realizando sessões de disseminações e entrevistas com a as pessoas privadas de liberdade e com o pessoal penitenciário, nesses dois estabelecimentos, para entender a realidade e as necessidades específicas da população", explica Patrícia Badke, coordenadora adjunta do Departamento de Proteção da delegação regional do CICV para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, e responsável pelo Programa em Favor das Pessoas Privadas de Liberdade da Delegação Regional. Segundo ela, a longa experiência do CICV em detenção está tendo um foco inovador de trabalho com esses grupos.



Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa (IPF) no Ceará é atendido pelo CICV. Foto: Camila Almeida/CICV 

Foco nas Pessoas

No primeiro contato com as pessoas privadas de liberdade no Ceará, o CICV realizou, aproximadamente, 20 rodadas de conversas (sessões de disseminação de informação) com cerca de 500 pessoas em ambas as unidades prisionais priorizadas.

"Iamos com uma equipe, juntavamos pequenos grupos de 20-30 pessoas e contávamos o que era o CICV, o que a gente ia fazer naquelas unidades, e como iríamos trabalhar. O objetivo era que pudessem realmente conhecer e entender o nosso trabalho para evitar dúvidas, expectativas frustradas e maus entendimentos", explica Patrícia.

Após esse encontro inicial, o CICV realizou entrevistas individuais, voluntárias, anônimas e confidenciais, em profundidade, com aproximadamente 350 pessoas privadas de liberdade. Essas entrevistas — que garantem o sigilo da fonte—abordaram múltiplos aspectos da história de vida dessas pessoas e permitiram melhor compreender a realidade delas antes da privação de liberdade, durante, e inclusive, expectativas para o futuro fora do cárcere, assim coletando informações chave para a construção de um programa de detenção que inclua as perspectivas das pessoas diretamente afetadas/envolvidas e seja focado nas suas experiências e necessidades específicas.

Queríamos compreender de onde elas vinham, que problemas enfrentaram, a realidade de suas famílias, como era a situação dentro dos presídios tanto das condições como do tratamento e quais dificuldades elas precisavam superar. Afinal, um princípio humanitário internacional (Regras de Mandela) adotado também pelo CICV determina que a pena de reclusão é a punição ou sanção penal recebida por haver
cometido um delito, mas não deveria ser executada de tal modo que as condições de privação de liberdade agravem ainda mais a pena

Patrícia acrescenta, ainda, a importância de o CICV contar com a colaboração das autoridades penitenciárias nesse processo, reconhecendo que permitir atividades como essas evidentemente impactam a dinâmica e rotina das unidades e das equipes que ali trabalham.

A criação, a priori, de um ambiente de confiança, que permita um diálogo aberto e confidencial, é uma boa prática do CICV. Por isso, as entrevistas com pessoas privadas de liberdade são sempre realizadas em um espaço privado, sem algemas e sem a presença de policiais penais.

500 pessoas privadas de liberdade
Assistiram a sessões de disseminação do trabalho do CICV
350 entrevistas
Com pessoas privadas de liberdade e pessoal penitenciário para entender a realidade e necessidades de cada um

Outros Públicos

É importante ressaltar que o ambiente prisional não é formado apenas de pessoas privadas de liberdade e que o foco do CICV é contribuir para o sistema como um todo. Com o intuito de abarcar os profissionais que atuam nesses locais, e compreendendo que essas pessoas também enfrentam uma realidade difícil com necessidades específicas, foram realizadas entrevistas em grupos com policiais penais (anteriormente denominados agentes penitenciários), outros funcionários de equipes técnicas e dirigentes dos estabelecimentos.

O trabalho da área de detenção teve como foco avaliar condições gerais para contribuir de forma multidisciplinar e sugerir melhorias em outras áreas específicas, além da proteção, visando prestar um apoio mais completo e integral às autoridades prisionais do estado. Durante o ano de 2021, o CICV realizou três avaliações nas duas unidades prisionais, com diferentes equipes de técnicos e especialistas:

1. Avaliação de gestão;
2. Avaliação de infraestrutura; e
3. Avaliação de saúde.

O objetivo principal foi mapear a realidade dessas unidades para poder apoiar as autoridades penitenciárias com soluções construtivas e melhorar o tratamento, as condições de detenção e o processo de ressocialização das pessoas privadas de liberdade.

Trabalho de Campo

Todas as entrevistas e avaliações realizadas pelo Departamento de Proteção em 2021 ajudarão o CICV a chegar a uma resposta mais ajustada à realidade e a um apoio mais integral para o governo do Ceará, pensando tanto no bem-estar da população privada de liberdade — foco do CICV— como no pessoal penitenciário e nas equipes de suporte. "Nosso objetivo é entregar um diagnóstico confidencial de linha de base da realidade e necessidades de grupos em situação de vulnerabilidade privados de liberdade do Ceará às autoridades penitenciárias locais em 2022. O documento é sigiloso e a expectativa é que esse trabalho contribua de alguma maneira com as autoridades para melhorar as condições de encarceramento, de forma estrutural", resume Patrícia. Ainda de acordo com a coordenadora adjunta do Departamento de Proteção do CICV, é importante esclarecer que o trabalho da instituição no Brasil não visa dar apoio às necessidades particulares de uma pessoa privada de liberdade, mas busca trazer melhorias para um coletivo e um sistema como um todo. "Nosso trabalho é dar um apoio mais sistêmico à gestão penitenciária para contribuir com essas pessoas, visando melhorar as condições de detenção de todo o coletivo, o tratamento às pessoas e a reintegração. Isso implica em acompanhar, por exemplo, desde a alimentação, o acesso ao ar livre, à saúde dessas pessoas, até o contato com as suas famílias." Para 2022, a expectativa do Programa em Favor das Pessoas Privadas de Liberdade é consolidar o trabalho iniciado no Ceará, com foco nos grupos em situação de vulnerabilidade — principalmente, as mulheres e os grupos LGBTQIA+ — com enfoque na população trans, para dar um apoio técnico substancial na melhoria das condições de detenção delas e na adoção de um enfoque diferencial. "Será a hora de dar início ao trabalho de campo de verdade, já conhecendo melhor a realidade e as necessidades desses grupos. Como estamos lidando com populações mais vulneráveis em situações de encarceramento, temos de cuidar para que o tratamento dado a elas pelas autoridades penitenciárias seja, de certa forma, diferenciado e esteja adequado às suas demandas específicas", conclui.

Depoimento

Ilana Ferro, diretora da Unidade Prisional Irmã Imelda, no Ceará

"A parceria com a Cruz Vermelha, além de ser um gesto de amor e doação ao próximo, é de extrema importância para a melhoria das ações na unidade. Com seu olhar atencioso, a equipe da CICV foi capaz de perceber e colaborar em avanços na qualidade de vida dos internos que permanecem recolhidos nesta unidade. Uma escuta atenciosa e ações proativas fizeram com que houvesse melhorias na água que se consome, no conforto de internos com comorbidades, deficiências físicas, visuais e neurológicas.

Houve também propostas para que se construa um espaço voltado para o lazer dos policiais penais, enquanto permanecem no plantão. A população que compõe o sistema prisional — policiais penais e internos — percebe com bons olhos a presença do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e se alegra em ver que muitas das pautas discutidas são, de imediato, encaminhadas. Espero que essa parceria continue e avance cada vez mais. Somente com o envolvimento de todas e todos poderemos promover uma mudança na vida dessas pessoas."