Conflito em Nagorno-Karabakh: encontrar pontos em comum em relação às pessoas falecidas

Conflito em Nagorno-Karabakh: encontrar pontos em comum em relação às pessoas falecidas

Artigo 26 abril 2021 Armênia Azerbaijão

"Você acreditaria em mim se eu dissesse que sinto ciúmes quando vejo pais que visitam a sepultura de seus filhos? Eu fico me perguntando: 'eu não mereço nem sequer isso?'"

O filho de Ashot* lutou na escalada do conflito em Nagorno-Karabakh do ano passado. Ele foi dado como morto, mas Ashot ainda não recebeu seu corpo.

"Eu não consigo descrever o quão terrível é viver assim", disse ele. "Tudo que eu quero é um lugar para onde ir, e falar com meu filho e fazer o luto."

Para qualquer pai, a perda de um filho é extremamente dolorosa. Mas perder um ente querido, não saber onde ou como morreu, e não receber seus restos mortais, provoca ainda mais dor.

E essa é a sorte que coube a centenas de famílias em toda a região.

"Meu filho estava noivo, o casamento estava previsto para outubro, mas ele desapareceu", disse Ahmad*, outro pai que procura respostas após seu filho ter desaparecido em combate.

"Até hoje, não temos novidades nem um corpo para chorar. A noiva do meu filho prometeu visitar sua sepultura usando o vestido de casamento, se seus restos mortais forem encontrados."

Uma escalada do conflito causou uma enorme devastação - ©CICV
Uma escalada do conflito causou uma enorme devastação - ©CICV

Seis semanas de hostilidades intensas desde o final de setembro causaram uma enorme devastação e deixaram civis de toda a região em condições terríveis.

As armas silenciaram em meados de novembro, quando um cessar-fogo entrou em vigor.

Muitas pessoas associam o CICV com a prestação de ajuda humanitária a pessoas afetadas por conflitos, mas o trabalho feito pela organização relativo à construção do respeito pelas pessoas falecidas talvez seja menos conhecido, embora não menos importante.

No centro desse trabalho se encontram a colaboração e a cooperação. É necessário encontrar pontos em comum para que as famílias possam obter as respostas de que precisam.

Recuperar e identificar restos mortais

O Direito Internacional Humanitário (DIH) exige que os restos mortais das pessoas que morreram durante um conflito armado sejam tratados com dignidade e respeito.

Em todo o mundo, o CICV promove o tratamento digno das pessoas falecidas, fortalece os conhecimentos forenses locais e trabalha como um intermediário neutro para facilitar a devolução de restos mortais às suas famílias nas linhas de frente.

"Não conhecer a sorte e o paradeiro de um ente querido é profundamente traumático. Muitas famílias não acreditarão que seu ente querido morreu até que tenham seus restos mortais. Esta é uma fase importante do processo de luto", disse a gerente forense regional do CICV para a Eurásia, Jane Taylor.

"Recuperar os restos mortais, identificar as vítimas e repatriar os restos é um processo muito complexo e que demanda muito tempo. Existe muita pressão e não há margem para o erro."

É necessário contar com colaboração para realizar missões de recuperação – ©CICV
É necessário contar com colaboração para realizar missões de recuperação – ©CICV

O processo começa no início das hostilidades. As equipes do CICV garantem que as partes em conflito compreendam suas obrigações em relação às pessoas mortas e as incentivam a trabalhar em conjunto para facilitar a recuperação e a identificação das pessoas falecidas.

Em uma zona de conflito onde o controle sobre o território muda de mãos, as minas terrestres e as munições cobrem a paisagem, e as emoções são intensas, isto é mais fácil de dizer do que de fazer.

O trabalho próprio de recolher restos mortais é realizado pelas autoridades relevantes. A função do CICV é facilitar as operações, como um intermediário neutro, para que eles possam avançar da melhor maneira possível.

Até o momento, o CICV participou em mais de 170 missões de recuperação em relação à escalada do conflito em Nagorno-Karabakh do ano passado. Mais de 1,6 mil corpos foram recuperados desde o cessar-fogo, de acordo com as autoridades.

Quando são recolhidos os corpos do campo de batalha, todas as informações são vitais para aumentar as chances de identificação. Devem ser registradas as coordenadas de GPS do local onde são encontrados os restos mortais para que as autoridades possam compará-las com os dados militares.

Os restos mortais devem ser colocados em sacos mortuários separados, junto com roupas ou pertences que possam ajudar no processo de identificação.

"Você não deve minimizar a importância dos bens pessoais para as famílias", disse Taylor.

Os pertences dos entes queridos, como um relógio, podem evocar fortes emoções e ajudar as famílias a aceitar a sua perda

As famílias são centrais para o processo. No início, eles fornecem detalhes pessoais sobre os entes queridos desaparecidos. Posteriormente, se for necessário, é requerido que eles forneçam uma amostra de DNA.

Mas não se trata de um simples procedimento burocrático. As entrevistas com as famílias são realizadas por pessoal treinado, para fornecer a elas a maior segurança e apoio possíveis.

As crenças religiosas da família também devem ser consideradas, devido a que cada religião pode ter suas próprias práticas culturais em relação ao tratamento das pessoas falecidas.

Até o momento, o CICV participou em mais de 170 missões de recuperação – ©CICV
Até o momento, o CICV participou em mais de 170 missões de recuperação – ©CICV

Todo indício reunido na fase de recuperação, combinado com as informações da autópsia, que podem incluir o perfil de DNA, é utilizado para formular uma hipótese para a identificação.

"A identificação visual por si só nunca é suficiente, já que a aparência física realmente muda ao falecer e pode ser uma experiência traumática para quem identifica o corpo", explicou Taylor.

Quando os restos mortais estão fragmentados ou misturados com os de outros indivíduos, o processo de identificação se torna mais difícil e pode envolver exames de DNA, odontológicos ou antropológicos especializados.

Geralmente, esta função é realizada pelas autoridades relevantes. Quando não existem conhecimentos especializados, o CICV pode assistir no processo compartilhando sua experiência.

Atualmente, geneticistas do CICV, que pertencem à equipe forense localizada em Tbilisi, estão apoiando o desenvolvimento de capacidades em toda a região.

"Nosso objetivo final é ajudar a identificar os restos mortais. Todos os especialistas forenses, pertençam ou não ao CICV, consideram um fracasso pessoal quando não têm sucesso", disse Taylor.

"Mas você deve aceitar que haverá situações em que os corpos das pessoas desaparecidas nunca serão encontrados ou que os restos mortais não poderão ser identificados. Isso é incrivelmente triste."

Este resultado tem um precedente histórico na região. Há cerca de 4,5 mil pessoas registradas no CICV como desaparecidas devido ao conflito em Nagorno-Karabakh no início dos anos 90.

Apesar do tempo transcorrido, o CICV continua trabalhando com as autoridades para esclarecer sua sorte.

Minas terrestres e coragem

Em áreas que testemunharam intensos enfrentamentos no ano passado, o terreno está repleto de minas terrestres e munições não detonadas ou abandonadas.

As considerações de segurança ao realizar missões de recuperação são fundamentais.

As minas terrestres e as munições cobrem a paisagem – ©CICV

"Minas antipessoal, armas carregadas, granadas, RPGs, bombas para morteiros, mísseis antitanque, foguetes de longo alcance... há contaminação em toda parte", disse Chris Poole, um especialista em armas do CICV.

"Inevitavelmente, os restos mortais que estão sendo recuperados se encontram em locais onde aconteceram os enfrentamentos, então temos que lidar com uma paisagem realmente perigosa."

"No início das operações de recuperação, as tensões eram altas, não apenas devido à contaminação por armas, mas também porque tinha pessoas de forças opostas trabalhando juntas."

"Mas com uma visão genuína de que era um trabalho que devia ser feito. Havia muita coragem moral de todos as pessoas envolvidas."

Condições desafiadoras na região montanhosa do Norte – ©CICV
Condições desafiadoras na região montanhosa do Norte – ©CICV

As equipes de desminagem tinham que limpar estradas e caminhos antes de poder realizar as missões de recuperação. Vários incidentes trágicos servem de lembrete dos perigos inerentes.

Na região montanhosa do Norte, as temperaturas geladas e a neve representavam outro problema.

"As rotas eram acessíveis", disse Poole, "mas as viagens eram muito longas, lentas e traiçoeiras."

"Em alguns locais, os restos mortais estavam cobertos por neve espessa, o que tornava difícil, se não impossível, encontrá-los e recuperá-los."

Encontrar pontos em comum

Há cinco meses que o cessar-fogo entrou em vigor. Centenas de pessoas continuam desaparecidas, e as necessidades humanitárias na região são significativas.

A procura dessas pessoas desaparecidas continua, ao mesmo tempo que avançam os trabalhos para identificar os restos mortais.

"Com as autoridades, inspecionamos as áreas que poderíamos alcançar", disse o diretor regional do CICV para a Eurásia, Martin Schüepp.

"Não foi possível acessar alguns locais durante os meses do inverno, mas com a chegada da primavera, pode haver mais oportunidades."

Juntos, continuaremos tentando até esgotar todas as possibilidades, mas a verdade é que será muito difícil após tantos meses

Schüepp também reconheceu a colaboração das partes envolvidas, incluindo as forças de manutenção da paz da Rússia.

"O que eu achei impressionante na minha última visita foi como armênios e azerbaidjanos trabalhavam lado a lado procurando por seus camaradas caídos", disse ele.

"Você podia ver como era emocionante para os soldados, mas se apoiavam uns aos outros. Foi bastante único e algo que raramente vemos."

"Isso demonstra que, mesmo em tempos de guerra, os adversários podem encontrar um ponto em comum em torno de questões humanitárias."

*Nome alterado