México: bonequinhas quitapesares acompanham familiares de pessoas desaparecidas

México: bonequinhas quitapesares acompanham familiares de pessoas desaparecidas

Tradicionalmente conhecidas como bonequinhas quitapesares, elas são bonecas diminutas que medem apenas uns milímetros. Cabem três, cinco, dez na palma da mão e estão feitas de papel e fios de algodão. Reza a lenda que, em uma comunidade na Guatemala, antes de dormir, as crianças contavam a essas bonequinhas tudo que lhes tirava o sono — medos, problemas ou preocupações — e as bonequinhas “absorviam” esse desassossego. Bastava simplesmente colocá-las debaixo do travesseiro.
Artigo 21 setembro 2021 México

Patricia tem uma boneca à qual conta as suas preocupações e lhe confia os seus segredos. Feita por ela mesma, com muita dedicação e carinho, numa tarde de junho, a sua boneca é maior, mede uns dez centímetros. Ela costurou uma tira de renda branca e a vestiu com um vestido de flores. Porém, o mais importante é colocou um cachecol feito com uma meia do seu filho Bryan, desaparecido em Guadalajara, no estado mexicano de Jalisco, em 2018.

"Coloquei esse cachecol nela porque, como é a bonequinha das lembranças, posso tê-lo sempre aqui, nas minhas lembranças, no meu coração, na minha mente".

Como ela, outras 51 pessoas também fizeram as suas próprias bonequinhas, que as acompanharão na busca do seu ente querido. Essa oficina é parte do programa Acompanhar as ausências, que recebe apoio da delegação regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para México e América Latina.

A psicóloga da delegação do CICV para a zona do Pacífico, Beatriz Reyes, explica que para a organização é uma prioridade acompanhar as famílias de pessoas desaparecidas a partir das suas necessidades. Uma delas é o atendimento à saúde mental.

"Para o CICV é importante criar espaços seguros que permitam que as pessoas compartilhem a sua dor, angustia, incertezas e, sobretudo, os seus saberes sobre como lidam com esse processo", explica Reyes.

Durante a pandemia, as famílias receberam acompanhamento psicossocial de maneira virtual e a oficina para a confecção dessas bonecas foi a primeira atividade depois de mais de um ano de distanciamento físico.

Qualquer objeto pode ser um tesouro

Uma meia, uns botões, uma camiseta usada. Para as famílias de pessoas desaparecidas, as peças de roupa e objetos dos seus entes queridos são uma forma de tê-los presentes no seu dia a dia. Isso não significa que não pensem neles — muito pelo contrário. Respiram a ausência: "Desde que amanhece está presente nas minhas lembranças, está presente na minha memória, está presente em tudo o que eu faço".

Mas a memória é muito importante para elas. E preservar as lembranças de um ente querido é mantê-lo presente. Por isso, ao fazerem as bonequinhas, incorporam uma peça de roupa da pessoa que buscam.

A boneca de Patricia não tem olhos para que não a julgue, nem boca para que não lhe diga palavras que a machuquem. Assim, quando Patricia se sente sozinha, pode contar as suas tristezas e ir levando os momentos difíceis.

A boneca que acompanha as famílias está feita assim de propósito, já que muitas vezes, quando expressam os seus sentimentos com outras pessoas que não vivenciam a sua problemática, são julgadas ou estigmatizadas.

Segundo a psicóloga, o objetivo dessa bonequinha é que as pessoas se sintam acompanhadas quando não tiverem a sua rede de apoio ou quando não possam se reunir, como aconteceu como consequência da pandemia: que possam falar com as bonecas sobre as suas frustrações e as situações difíceis que atravessam.

"Eu a guardo debaixo da almofada. De repente a coloco em uma cestinha, em pé o dia todo. Não precisa ter mais ninguém para conversar. Talvez, nesse momento posso trazer um sentimento de tristeza ou outra coisa, então pego a bonequinha e converso com ele", compartilhou outra participante.

Ao mesmo tempo, as famílias sabem que a bonequinha tem outras bonecas que também são parte de um tecido social: as famílias que continuam buscando os seus entes queridos, um grupo no qual encontraram compreensão, solidariedade, escuta e força para continuar a busca dos seus entes queridos.

Enquanto bordam e costuram, as famílias conversam e se escutam ao vivo pela primeira vez em muitos meses. Falam de tudo que atravessaram desde que perderam os seus entes queridos, de como a pandemia dificultou as buscas e das coisas que as ajudam a seguir em frente. Acompanham e são acompanhadas.

"Deus pôs ao meu lado uma senhora nova e me senti tão bem ao expressar-lhe as minhas palavras de apoio... É algo que jamais tinha feito: dar força, quando sinto que sou tão frágil", contou uma das participantes da oficina.

Embora a oficina tenha sido presencial, manter o distanciamento físico foi fundamental como parte do cuidado mútuo. Elas não podiam se tocar, mas as suas bonecas, sim, podiam estar próximas. Ao terminar de confeccioná-las, as bonecas são colocadas em um círculo. "Queremos visibilizar a importância de continuar sendo apoiadas por um grupo, a importância de continuar construindo redes de apoio", contou Reyes e acrescentou: "Apesar da dor, da incerteza e da angústia que não acaba, elas podem estar sempre acompanhadas".

A busca de um ente querido pode ser um caminho muito solitário

Segundo a psicóloga, a busca de um ser querido pode ser muito solitária. O objetivo dessa bonequinha é que as pessoas se sintam acompanhadas quando não tiverem a sua rede de apoio ou quando não possam se reunir, como aconteceu como consequência da pandemia: que possam falar com as bonecas sobre as suas frustrações e as situações difíceis que atravessam.

Ao mesmo tempo, as famílias sabem que a bonequinha tem outras bonecas que também são parte de um tecido social: as famílias que continuam buscando os seus entes queridos, um grupo no qual encontraram compreensão, solidariedade, escuta e força para continuar a busca dos seus entes queridos.

Mais de um ano depois de não ter contato com as famílias, as equipes do DIF Guadalajara e do CICV, como parte do programa Acompanhar as ausências, decidiram realizar esta oficina depois de observar as problemáticas derivadas da pandemia. Contou com a participação de 51 mulheres e um homem.

Reyes detalha que, sobretudo, houve complicações para que as famílias se mantivessem comunicadas. "A ideia foi fazer algo manual, a construção do tecido social, mas, principalmente, algo que pudessem levar consigo, porque sabemos que a pandemia vai continuar. Não sabemos em que medida vamos continuar de forma virtual ou presencial".

 

Como parte da nossa ação humanitária, acompanhamos as famílias que buscam um ente querido desaparecido no México, colocando as suas necessidades no centro de tudo e somando forças com elas e com as autoridades. Para milhares de famílias no México e América Central, a busca não para. Nosso compromisso é continuar acompanhando estas famílias.

Poema lido durante a oficina:

Sou feita de retalhos.
Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha
e que vou costurando na alma.
Nem sempre bonitos, nem sempre felizes,
mas me acrescentam e me fazem ser quem eu sou.
Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior...
Em cada retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade...
Que me tornam mais pessoa, mais humana, mais completa.
E penso que é assim mesmo que a vida se faz:
de pedaços de outras gentes que vão se tornando parte da gente também.
E a melhor parte é que nunca estaremos prontos, finalizados...
Haverá sempre um retalho novo para adicionar à alma.
Portanto, obrigada a cada um de vocês,
que fazem parte da minha vida
e que me permitem engrandecer minha história
com os retalhos deixados em mim.
Que eu também possa deixar pedacinhos de mim pelos caminhos
e que eles possam ser parte das suas histórias.
E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia,
um imenso bordado de "nós".