O ataque aéreo a um hospital em Aleppo é um alerta para a ONU. A organização deve agir agora.
O mundo testemunha os constantes ataques à prestação de assistência à saúde em tempos de conflito. O princípio de que a assistência vem em primeiro lugar deve estar vigente.
Hospital Al Quds de MSF depois de ter sido atingido pelo ataque aéreo em uma área controlada por rebeldes em Aleppo. Fotógrafo: Abdalrhman Ismail/Reuters
Às 22h, duas noites atrás, o hospital Al Quds, no norte da cidade síria de Aleppo, foi atacado. Com o bombardeio, o hospital de 34 leitos, que oferecia serviços que incluíam um pronto-socorro, uma unidade de tratamento intensivo, uma sala de cirurgia e o principal centro de referência pediátrica das cidades da região, foi completamente destruído.
Rodeados pela escuridão e pela poeira, os pacientes, funcionários e voluntários que sobreviveram começaram a escavar para retirar as pessoas que ficaram soterradas pelos escombros. Oito médicos trabalhavam em tempo integral no hospital, dois dos quais estão entre os 14 mortos confirmados. A dedicação e o compromisso deles com a prestação de assistência à saúde para as pessoas necessitadas resultaram ser o sacrifício maior.
Infelizmente, não é um caso isolado. Do Afeganistão à República Centro Africana, do Sudão do Sul ao Iêmen e Ucrânia, ambulâncias, hospitais e centros de saúde foram bombardeados, saqueados, incendiados e destruídos. Pacientes foram mortos nos seus leitos; profissionais de saúde foram atacados enquanto resgatavam os feridos.
Uma complacência perigosa está surgindo, fazendo com que ataques dessa natureza comecem a ser considerados normais. São parte do mosaico dos conflitos armados atuais, nos quais os civis e a infraestrutura civil são alvos, e mercados, escolas, casas e estabelecimentos de saúde são "alvos fáceis".
Entre 2012 e 2014, em apenas 11 países, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) registrou quase 2,4 mil ataques contra profissionais, estabelecimentos e veículos de saúde e pacientes. A grande maioria desses ataques foi contra estabelecimentos e profissionais, sendo os efeitos secundários devastadores para as comunidades adjacentes.
Por exemplo, na região do Upper Nile, Sudão do Sul, em julho do ano passado, uma enxurrada de foguetes caiu próximo a um complexo hospitalar de manhã cedo. Os estilhaços atravessaram as paredes claras e a cerca azul, despedaçando as pessoas que estavam a céu aberto.
Três pacientes - um homem, um menino de 12 anos e uma menina de 3 anos - morreram no ato. Nos dias posteriores ao ataque, mais de 20 pessoas morreriam em decorrência dos ferimentos, incluindo a mãe da menina. Com o recrudescimento dos confrontos, os funcionários do hospital, os pacientes e os civis fugiram. De repente, uma área com uma população de 75 mil pessoas ficou sem um importante centro médico. Muitas outras pessoas morreriam como consequência desse ato.
Em 2015, 75 hospitais de Médicos Sem Fronteiras (MSF), próprios e apoiados pela organização, sofreram 106 bombardeios e ataques parecidos. Inúmeras vidas foram perdidas e muito equipamento médico, destruído. Em setembro de 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que 654 profissionais foram mortos desde o início do conflito na Síria e que quase 60% dos hospitais funcionam parcialmente ou foram completamente destruídos.
De certa forma, essas estatísticas só servem para um desserviço, porque mascaram as tragédias individuais das pessoas encurraladas no conflito. Homens, mulheres e crianças, quase sempre com necessidades urgentes, veem as suas vidas serem destroçadas pelo conflito. E o seu último porto seguro - o hospital - é atacado.
Quem realiza esses ataques? Bem, praticamente todo mundo. Forças armadas, grupos armados, sim, inclusive governos que se sentam à mesa nas Nações Unidas. Sejamos claros. Nem sempre se trata de "danos colaterais". Esses atos podem ser sistêmicos, planejados, deliberados e ilegais. Um ataque contra a assistência à saúde, seja intencional ou "acidental", é um ataque ao Direito Internacional Humanitário (DIH).
O que estamos testemunhando é um ataque constante e uma enorme negligência com a assistência à saúde em tempos de conflito. Segundo o Direito Internacional Humanitário (DIH) e os seus princípios, os profissionais de saúde devem poder prestar atendimento médico a todas as pessoas doentes e feridas, independente de simpatias políticas ou de outra natureza, sejam elas combatentes ou não. E em nenhuma circunstância eles devem ser punidos por prestarem atendimento que esteja em conformidade com a ética profissional. O médico do seu inimigo não é seu inimigo.
Mas nos confrontamos com violações dessas normas, com graves consequências humanitárias, para comunidades e sistemas de assistência à saúde inteiros que já estão no limite. E esta não é apenas a opinião de MSF e do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
É por isso que nós, presidentes de MSF e do CICV, acolhemos com satisfação a proposta para uma resolução histórica da ONU para proteger a assistência à saúde. Porém, instamos o Conselho de Segurança da ONU a tornar a resolução efetiva. Em primeiro lugar, o Conselho de Segurança deve mandar uma forte mensagem política de que a assistência à saúde precisa ser protegida. Todas as partes envolvidas no conflito armado devem cumprir integralmente com as suas obrigações segundo o Direito Internacional, incluindo o Direito Internacional Humanitário (DIH). E deve-se estipular claramente o respeito pela prestação imparcial de assistência à saúde durante tempos de conflito.
As forças armadas e todas as partes em conflito devem respaldar as medidas práticas para a proteção dos feridos e doentes.
Em segundo lugar, o Conselho de Segurança deve instar os Estados e todas as partes em conflito a desenvolverem medidas efetivas para prevenir a violência contra os profissionais, estabelecimentos e veículos de saúde. Os Estados precisam amparar, quando for o caso, as suas legislações, incluindo a retirada de restrições e sanções que impeçam o atendimento médico imparcial em tempos de guerra.
As forças armadas e todas as partes em conflito devem integrar as medidas práticas para a proteção dos feridos e doentes e para as pessoas envolvidas no trabalho de saúde. Tais medidas devem ser incorporadas a ordens, regras de engajamento, procedimentos operacionais padrões e treinamento.
Em terceiro lugar, o Conselho de Segurança deve reconhecer que quando ocorrerem ataques contra estabelecimentos e profissionais de saúde, é preciso que haja investigações rigorosas, rápidas, imparciais e independentes para estabelecer os fatos. Não podem ser somente as vítimas ou os perpetradores que tentem estabelecer os fatos. E devem haver relatórios regulares e formais sobre tais ataques nas mais altas esferas, além de um debate anual no Conselho de Segurança.
Subjacente a tudo isso, deve haver uma aceitação de que as necessidades médicas das pessoas - sem importar quem são, a origem delas e que lado apoiam ou defendem – devem ter preferência. As equipes de saúde estão presentes em áreas de conflito para cuidar dos doentes e feridos, trabalhando com base nas necessidades. E somente nas necessidades. Este é o princípio fundamental da imparcialidade e é a base de ética médica.
É o simples fato de os médicos atenderem com base na necessidade - e não estarem envolvidos nas hostilidades - que lhes permite reivindicar a proteção segundo o Direito Internacional Humanitário (DIH).
A resolução da ONU oferece uma oportunidade. Uma oportunidade para estabelecer os limites para evitar futuros ataques como o ocorrido em Aleppo. Os Estados têm a responsabilidade moral e legal de agir para proteger as pessoas encurraladas por um conflito armado. O momento de agir é agora.
Peter Maurer é presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e a Dra. Joanne Liu é presidente internacional de Médicos Sem Fronteiras (MSF)
Artigo originalmente publicado no jornal The Guardian