Peter Maurer
Presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)
* Este artigo faz parte da Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial.
Neste mês, em Timbuktu, no Mali, me reuni com famílias sem alimentos, cujas colheitas foram ruins e cujas crianças foram mortas por artefatos explosivos improvisados. Não pude deixar de me comover com o profundo sofrimento dessas pessoas; muitas vivem uma situação de extrema ansiedade.
Da África Ocidental segui direto para Davos, na Suíça, onde chamei a atenção dos líderes da Reunião Anual do Fórum Econômico Mundial para a situação de sofrimento humano na região do Sahel.
Nada menos que 120 milhões de pessoas no mundo inteiro precisam hoje de ajuda para sobreviver, como consequência de conflitos armados e outras situações de violência. O Iêmen, a Síria e o Sudão do Sul são sinônimos de sofrimento.
No Sahel, surge uma nova realidade: a mudança climática está agravando os já devastadores impactos do conflito, da pobreza e do subdesenvolvimento. Nessa região de escassos recursos, as pessoas andam na corda bamba da sobrevivência. Com temperaturas atingindo quase o dobro da média global, a falta de ações certamente levará a um aumento da fragilidade e da insegurança, assim como das necessidades da população.
Hoje, nada menos que 120 milhões de pessoas no mundo inteiro precisam de ajuda para sobreviver, como consequência de conflitos e outras situações de violência
Não há soluções simples para abordar ou evitar os danos causados por essas dinâmicas complexas em grande escala. A ajuda humanitária de emergência será sempre necessária, mas não basta para atender às enormes demandas.
Este é um ano crucial para a resposta humanitária, pois os acordos políticos de longo prazo ainda são difíceis de alcançar em muitos lugares. É essencial que haja uma reorientação mais abrangente da ação humanitária – que ofereça visões e respostas de longo prazo, com a dimensão necessária. Este ano, acredito que os avanços em oito áreas trarão notáveis mudanças às necessidades humanitárias.
1. Foco nas áreas de tensão
Vinte das crises mais violentas do mundo estão na origem de mais de 80% dos deslocamentos e das necessidades humanitárias.
Os impasses devem ser substituídos por ações políticas decisivas, a fim de romper o ciclo de violência e apoiar as frágeis tentativas de estabilização.
A Síria, o Iraque, o Iêmen, o Chifre da África, a região do Lago Chade e as crises do Sahel, do Afeganistão e de Myanmar/Bangladesh continuarão sendo os principais centros de tensão em 2019.
2. Reunir ideias, habilidades e recursos
Sozinho, nenhum setor poderá dar conta da profundidade e da amplitude das crises humanitárias: os avanços exigirão um forte apoio dos Estados, das organizações internacionais e da sociedade civil em geral.
Embora o espaço humanitário neutro, imparcial e independente ainda seja o mais adequado para recompor as vidas e garantir a reconciliação, os atores humanitários podem liderar os esforços nas linhas de frente e guiar os demais em cenários marcados por sociedades fragmentadas, desafios de segurança e necessidades multifacetadas.
Organizações locais e internacionais podem se complementar. A academia oferece o pensamento crítico e a mensurabilidade, enquanto o setor privado possui uma capacidade sem igual para dinamizar as economias e apoiar as comunidades no desenvolvimento de negócios, competências e habilidades.
O Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho se encontra em uma posição única para vincular os esforços internacionais e locais e maximizar as respostas em mais de 190 países. O sistema das Nações Unidas possui um poder singular de convocação para reunir os Estados em torno de respostas mais generosas.
O Mecanismo de Ação contra a Fome (FAM), desenvolvido pelo Banco Mundial em parceria com o Google, a Amazon, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), é uma ideia potencialmente revolucionária: reúne novas perspectivas e conhecimentos para enfrentar um problema antigo e ameaçador.
3. Liberar novos investimentos para a ação sustentável
O modelo de financiamento humanitário tradicional se baseia na captação de recursos para os gastos humanitários de emergência. Diante de crises mais prolongadas e da crescente lacuna entre as necessidades e as respostas, a assistência tradicional deve ser acompanhada de investimentos mais sustentáveis e direcionados a pessoas, habilidades e recursos para as comunidades.
A grande questão em 2019 é se as partes interessadas vão avançar e aumentar os recursos em contextos frágeis, como o Programa para Investimento em Impacto Humanitário (antes conhecido como Bônus de Impacto Humanitário), ao mesmo tempo em que dividem o risco para aumentar a escala dos financiamentos inovadores.
4. Apoiar a autossuficiência, não a dependência
As comunidades afetadas pela guerra têm uma capacidade inerente de lidar com as crises. Em vez de incentivar a dependência de ajuda, devemos auxiliar as pessoas afetadas a passar da situação de emergência para a geração de renda.
As transferências de dinheiro substituíram a entrega física de assistência em algumas áreas, enquanto os microcréditos propiciaram a atividade econômica independente. A ajuda de emergência ainda é necessária em uma escala considerável, mas é hora de termos soluções mais sofisticadas, duráveis e que possam ser ampliadas.
5. Projetar novas respostas humanitárias
Dada a crescente conectividade mundial, os atores humanitários precisam estar mais próximos, engajados e responsáveis perante as populações afetadas. Devem apoiar mais os esforços de primeira resposta das populações e se preocupar mais sobre como elaborar uma resposta internacional para ajudar os atores locais.
Isso exige uma mudança das soluções pré-fabricadas para um apoio mais adaptado, contextualizado e, finalmente, individualizado.
6. Aproveitar as oportunidades digitais e prevenir os danos
As ferramentas digitais já transformaram a prestação de assistência e a interação com as populações afetadas. E o farão ainda mais no futuro. As grandes questões de 2019 vão desde a informação como benefício humanitário até a aplicação do Direito Humanitário Internacional (DIH) na guerra cibernética. A transformação digital traz oportunidades (melhores analíticas e cadeias de abastecimento) e desafios. É necessário um novo consenso sobre as identidades digitais e a proteção de dados, em especial nas zonas de conflito.
7. Abordar os traumas invisíveis
Cada vez mais nos deparamos com sofrimentos invisíveis, entre os quais se destacam a angústia e os problemas de saúde mental causados por violência sexual. Estima-se que, após crises humanitárias grandes e repentinas, entre 10% e 15% das pessoas desenvolvam doenças mentais leves ou moderadas, e até 4% delas tenham transtornos mentais graves. A saúde mental, portanto, deve ser uma prioridade nas emergências humanitárias e levada tão a sério quanto a saúde física. Apoiar a saúde mental das pessoas pode salvar vidas em tempos de guerra e violência, tanto quanto estancar um ferimento ou tratar a água.
8. Respeitar a lei, sem desculpas
Neste 2019, ao celebrarmos os 70 anos das Convenções de Genebra, reconhecemos que elas salvaram milhões de vidas e minimizaram o impacto dos conflitos sobre os civis durante décadas, criando condições para a estabilidade e uma paz mais duradoura.
Mas as Convenções precisam ser interpretadas e implementadas à luz dos desafios contemporâneos. Em 2019, quero que nos comprometamos novamente com o uso da força baseado na lei, o tratamento humano dos detidos e a proteção das populações civis. O respeito pelos princípios básicos é prioritário – mesmo em conflitos armados –, envolvendo operações de combate ao terrorismo, guerra assimétrica e situações de ampla insegurança pública ou de violência entre comunidades.