André Liohn fala da falta de respeito à missão médica em conflitos
Desde 2004, o fotojornalista André Liohn registra conflitos armados ao redor do mundo e suas consequências para as populações, vítimas da violência. Em um trabalho que alerta o público para a importância de exigir que as equipes de saúde, hospitais e ambulâncias sejam respeitados, estará em cartaz a exposição fotográfica "Assistência à Saúde em Perigo: Líbia e Somália no Olhar De André Liohn", na Biblioteca Parque Villa-Lobos, São Paulo, 29 de maio a 05 de julho de 2015. (Terça-feira a domingo, das 10h às 19h).
A mostra de André Liohn é parte da campanha internacional "Assistência à Saúde em Perigo", lançada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que tem como objetivo de mobilizar a comunidade internacional para reforçar a determinação dos Estados, das instituições e da opinião pública sobre a necessidade de proteger o acesso à saúde, garantindo a prestação imparcial e eficaz dos serviços de saúde em situações de conflito armado e emergências. As cerca de 70 fotos da exposição foram realizadas entre 2010 e 2013 na Líbia e na Somália.
A seguir, o premiado fotojornalista, vencedor do Robert Capa Golden Medal 2012, responde a questões sobre o respeito ao direito de feridos, civis ou militares, à atenção médica, e dos profissionais da saúde de exercer a sua profissão com liberdade e segurança.
Durante o seu trabalho na Somália, o que você observou por parte das tropas – tanto do Estado quanto dos rebeldes - em relação ao tratamento dado aos feridos em conflito?
André Liohn - Na Somália, o governo não tinha condição de tratar os feridos, porque o país ficou por 20 anos sem uma estrutura de Estado e os rebeldes não tinham uma estrutura capaz de dar assistência a seus feridos e doentes. Então, os hospitais funcionam graças à iniciativa de pessoas como o doutor Mohamed Yussuf, que, com a ajuda do CICV, conseguiu reativar o Hospital Medina em Mogadício (a capital) e passou a tratar os pacientes sem perguntar de que lado do conflito os pacientes estão.
Médicos, socorristas e pacientes estão seguros nesse ambiente?
Mogadíscio é uma cidade grande e com muitas áreas de confrontos. A região do Hospital Medina foi a única que conseguiram isolar, depois de um acordo entre as partes, para que aquela área fosse neutra. Há também o Keisani, montado por alguns médicos que decidiram instalar um hospital de campo em um presídio abandonado, a uns 10 km da capital. Até hoje, ele funciona, mantido pelo CICV.
E na Líbia?
Logo no início do conflito na Líbia, houve a divisão do território. Quem era do leste ficava no leste e quem era do oeste, sob o controle do governo, ficava no oeste. Os rebeldes tratavam os feridos e não havia impedimentos para o trânsito das ambulâncias. Os hospitais funcionaram dos dois lados durante toda a guerra. Em Trípoli, entretanto, vários hospitais foram atacados. Muitos profissionais de saúde e pacientes que estavam em um hospital de campo na entrada da cidade morreram porque estavam na linha de frente do conflito. O mesmo aconteceu com o hospital da cidade: depois de um ataque, cerca de 200 pessoas morreram por falta de cuidados médicos. Em Sirte, homens armados também atacaram o hospital, matando profissionais de saúde e pacientes.
Esses ataques foram intencionais ou poderiam ter sido evitados?
As duas coisas. Os combatentes sabiam que havia um hospital, mas não exatamente onde, e tampouco fizeram questão de saber. Na tomada de Trípoli, um motorista de ambulância e dois médicos receberam uma chamada para socorrer um grupo de pessoas feridas, mas na verdade, foram atraídos para uma emboscada. Eles acabaram decapitados. Também foi um golpe bastante duro.
Outro caso foi o de Omar, um motorista de ambulância. Ele tinha 19 anos na época e não queria participar da luta armada. Entretanto, queria contribuir de alguma forma. Disseram então para ele: "Olha, você pode ser motorista de ambulância". Então, ele topou e passou a resgatar os feridos. Em Sirte, Omar foi ferido enquanto participava de um resgate. Um morteiro caiu no capô da ambulância que ele dirigia, pegou no motor e feriu seriamente sua perna. Ele ainda está se recuperando da lesão.
Então, podemos dizer que não houve respeito pela saúde dos civis?
O grande problema é que, nesse tipo de conflito, as partes não se preocupam em proteger os hospitais. Isso porque, se você é meu inimigo e eu te curo, aquele que te cura não te mata. É tão difícil eu te matar sem que tu me mates. E quando eu finalmente consigo te ferir, vai alguém e te cura. Os hospitais, as ambulâncias e os médicos são vistos como um problema em conflitos civis. Eles só são respeitados ou protegidos quando estão cuidando das pessoas do meu lado; quando não, eles se tornam meus inimigos.
Como é para você a atuação do CICV em área de conflito?
É fundamental. Se não fosse o CICV, teríamos hoje uma situação muito mais crítica, feia... Gostaria que houvesse uma palavra pior do que horrorosa. A situação está muito ruim, mas se não fosse o Comitê, nós estaríamos perdidos. É fundamental ter uma organização que, antes do posicionamento político, tem uma postura humanitária. Se não fosse isso, os civis e os refugiados, que já sofrem de formas terríveis e injustas, estariam jogados à própria sorte. Na Síria hoje, são quase 200 mil mortos. Sem o CICV, seriam milhões de mortos.
Saiba mais sobre a Exposição fotográfica 'Assistência à Saúde em Perigo: Líbia e Somália no olhar de André Liohn'