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“Cozinhar também é lembrar”: esforços renovados pelos desaparecidos no Brasil

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Com mais de 81.000 desaparecimentos registrados no Brasil no ano passado, nossa Delegação Regional de Brasília continua seu trabalho para destacar o impacto a longo prazo do desaparecimento nas famílias, defendendo melhor documentação, conscientização pública e sistemas de apoio. Como parte desses esforços, e em colaboração com o Movimento Nacional de Pessoas Desaparecidas, publicamos o Sabor da Saudade, um livro de receitas inspirado nas famílias de desaparecidos.

“Toda vez que o tempo virava para chuva, quando dá uma ‘nuveada’ como a gente fala aqui, ela já falava: ‘Ih, arrepiei três vezes, pode fazer sopa de macarrão com feijão para mim’”, lembra Gislaine Ferreira da Silva Nascimento. O prato, simples e acolhedor, agora carrega um peso que vai muito além dos seus ingredientes. A irmã de Gislaine, Graciane, desapareceu em 2005, aos 18 anos. Sua história – e sua sopa – fazem parte de Sabor da Saudade, um livro que entrelaça receitas e memórias, dando voz àqueles que vivem na sombra da ausência.

Saudade é uma palavra tão única que não existe tradução exata para outro idioma. Para Débora Alves Inácio, “este livro é uma tradução desse sentimento”. Seu filho, Kaio, desapareceu em 2013, aos 17 anos. “É uma lembrança do Kaio, mas também é uma forma de dizer: ainda estamos aqui. Resistimos ao esquecimento.” O prato favorito de Kaio, que ele mesmo preparava, era um doce de leite.

Uma mistura de gastronomia, memória e narrativa, Sabor da Saudade faz parte dos esforços contínuos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) para trazer visibilidade, dignidade e humanidade à questão das pessoas desaparecidas no Brasil. Mais do que um guia de preparo de comida afetiva, é uma homenagem à memória, uma forma de resistência e um apelo à visibilidade em um país onde os desaparecimentos não são documentados, e como tal, não são reconhecidos.

Cada receita do livro conta uma história: uma sobremesa favorita, um ritual de café da manhã, uma refeição simples feita com amor – e agora feita com saudade. Para famílias como as de Gislaine e Débora, o ato de cozinhar se tornou uma forma de lembrança, e a cozinha, seu santuário.

O prefácio do livro foi escrito por Marcelo Rubens Paiva — autor do livro de memórias que inspirou o filme "Ainda Estou Aqui", que conta a história de seu pai, o deputado federal Rubens Paiva, desaparecido em 1971, durante o regime militar brasileiro, através da vida de Eunice Paiva, mãe de Marcelo e viúva do deputado.

"Este livro reconhece a força e a resiliência das famílias de pessoas desaparecidas”, afirma Marta Gomes de Andrade, Coordenadora de Proteção da Delegação Regional do CICV. “Atos de memória ajudam a preservar a identidade e a história dos desaparecidos, garantindo que suas vidas não sejam reduzidas à condição de 'ausentes'".

Para homenagear as famílias que compartilharam suas histórias e receitas no livro, o CICV promoveu um jantar intimista, em São Paulo, preparado pelo chef Rodrigo Oliveira. O menu preparado por ele ganhou um significado adicional pela trajetória do próprio cozinheiro, que também viveu, em sua família, as consequências do desaparecimento de dois parentes.

Uma resposta institucional crescente

Uma das prioridades da Delegação Regional do CICV é apoiar as autoridades na prevenção e no enfrentamento da questão do desaparecimento de pessoas, trabalhando também para mitigar as consequências do desaparecimento para as famílias afetadas pela violência armada. 

Em meio a mobilização das famílias em torno do lançamento do livro em Brasília, uma ação paralela se desenvolveu no sistema judiciário brasileiro. Em votação unânime, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que estabelece uma política judicial para melhor apoiar as famílias de pessoas desaparecidas. A medida, que reconhece os familiares de pessoas desaparecidas como pessoas indiretamente afetadas, foi resultado do terceiro Encontro sobre os Aspectos Jurídicos do Desaparecimento, co-organizado pelo CICV e pelo programa Justiça Plural do CNJ/PNUD em junho de 2025. 

A resolução convoca ações por um sistema de justiça mais humano, célere e acessível. As principais prioridades da medida do CNJ incluem escuta qualificada, procedimentos não revitimizantes, processamento ágil de casos, uso de linguagem acessível e coordenação institucional multidisciplinar.

Reforçando o mesmo compromisso com a mudança sistêmica, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, com o apoio das recomendações e experiências do CICV, lançou o primeiro Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, com o objetivo de unificar e cruzar informações entre os estados federados, fortalecendo as investigações e melhorando as taxas de resolução. O CICV esteve presente na sessão de abertura da cerimônia de lançamento, juntamente com autoridades de alto escalão e representantes do Movimento Nacional de Familiares de Pessoas Desaparecidas, cuja participação foi facilitada pelo CICV.

Um esforço forense em busca de respostas

A Delegação Regional do CICV adotou uma abordagem multidisciplinar para responder à questão dos desaparecidos no Brasil, abrangendo proteção, direito, saúde mental, tecnologia e expertise forense para ajudar as autoridades estaduais e federais a construir mecanismos para localizar pessoas desaparecidas, tratar restos mortais com dignidade e conectar as famílias aos serviços necessários.

Cientes da importância do trabalho forense para acabar com a angústia das famílias de entes queridos desaparecidos, o CICV liderou e organizou – juntamente com parceiros – o IV Encontro Nacional de Institutos Médicos Legistas (ENIMLs), realizado durante a InterForensics 2025 no Paraná. O encontro enfatizou a importância de uma melhor coordenação nacional, protocolos de identificação mais robustos e gestão e identificação adequadas. No entanto, apesar dos esforços contínuos para unificar dados, padronizar procedimentos e humanizar os serviços, as diferenças de capacidade e recursos entre os estados da federação continuam representando desafios.

Ao reconhecer o impacto emocional do processo de identificação de pessoas, o ENIMLs deste ano incluiu uma oficina nacional sobre como apoiar as famílias durante esse momento tão doloroso. Desenvolvido pelo Programa de Saúde Mental e Apoio Psicossocial do CICV, o programa refletiu as necessidades expressas tanto por familiares quanto pela equipe forense.

“Muitos familiares já chegam esperando o pior”, disse Renata Reali, que lidera os esforços psicossociais do CICV no Brasil. “Mas a forma como são recebidos pode aliviar a dor ou agravá-la. Queremos preparar profissionais para oferecer apoio humano e compassivo.”

À medida que os esforços avançam nas esferas jurídica, forense e social, fica cada vez mais claro que a questão das pessoas desaparecidas no Brasil não se limita mais a estatísticas ou arquivos de casos não resolvidos. Agora, ela está inserida em políticas públicas, reformas do sistema forense e até mesmo em rituais familiares cotidianos, em uma receita passada de geração em geração, sustentada não apenas pela memória, mas pela persistência daqueles que se recusam a esquecer.

Livro Sabor da Saudade
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