Chile: casos de identidade
Patricio Bustos conta que, quando ficou preso nos anos setenta, as visitas de delegados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) provavelmente salvaram sua vida. Hoje, como diretor do Serviço Médico Legal do Chile, trabalha, com a ajuda do CICV, para resolver um dos maiores mistérios do país: o que aconteceu com os desaparecidos durante os anos do regime militar no Chile?
O homem que escolta Patricio Bustos demora a encontrar as chaves. Bustos continua impassível; afinal esperou muito tempo para isso. O que significam mais uns segundos? A pesada porta de aço finalmente é aberta e Bustos entra em um pátio de cimento do tamanho de uma quadra de tênis, rodeado em três de seus lados por um edifício azul de um único andar.
"Sim, me lembro", diz tranquilamente.
Bustos é o diretor do Serviço Médico Legal do Chile, quer dizer, a pessoa encarregada de encontrar respostas quando o governo precisa saber como, por que ou quando alguém morreu, ou descobrir a identidade de uma pessoa nos casos em que os restos mortais não podem ser facilmente identificados. Um dos casos mais importantes que ele investiga, com a ajuda do CICV, é a busca de respostas sobre as pessoas que foram assassinadas ou executadas, ou que simplesmente desapareceram, durante os anos de regime militar no Chile (1973-1990).
Hoje, quase 40 anos depois, Bustos, com 64 anos, realiza uma viagem pessoal, voltando a uma dolorosa etapa de sua vida.
Em 1976, foi a última vez que Bustos viu esse pátio, em circunstâncias muito diferentes. Naquele momento, era um jovem médico de tendência marxista que foi preso por sua ativa resistência contra o regime militar do Chile. O lugar, conhecido com o nome de Cuatro Álamos, era um centro de detenção em Santiago a cargo da polícia secreta do Chile. Só a polícia secreta sabia que ele estava ali.
Bustos, que não tinha voltado ao lugar desde sua libertação, em 1976, vai e vem por um estreito corredor, buscando em sua memória. Depois, para na frente de uma porta; em cima dela está pintado o número 2. "Esta foi minha cela", lembra, ficando na ponta dos pés para olhar por cima da porta.
Bustos caminha até o final do corredor, vira para a esquerda e entra em um quarto com azulejos de cerâmica branca e seis duchas. "Aqui era onde espancavam os presos", conta com total naturalidade. "Aqui foi onde me espancaram."
Ficou sozinho por um minuto. Há outro lugar que quer visitar. Trata-se de uma sala retangular com barras de ferro nas janelas que era a sala comum de Cuatro Álamos. Enquanto esteve preso, Bustos foi convocado ali um dia para se entrevistar com três homens que usavam insígnias com as cores vermelha e branca.
É um gesto humanitário, algo que o país precisa fazer, algo que o SML precisa fazer, para que haja justiça. É importante lembrar que, como sociedade, ainda temos dívidas pendentes
Essa reunião e outras conversas privadas similares com esses homens nos meses seguintes são quase com segurança o que impediu que fosse dado como desaparecido. "Aqui é onde me reunia com os delegados do CICV", diz sem estridência, de pé no meio do quarto. "Aqui foi onde me reuni com eles."
Os desaparecidos
Bustos chegou a Cuatro Álamos mais de dois anos depois dos acontecimentos ocorridos em 11 de setembro de 1973, quando os tanques tomaram as ruas e a força aérea bombardeou o palácio presidencial. O Presidente Salvador Allende e dezenas de seus partidários morreram esse dia. O general Augusto Pinochet anunciou essa noite, por televisão, que os militares tinham tomado o poder em nome da pátria.
As prisões começaram imediatamente e não pararam. No dia 12 de outubro, 26 simpatizantes de esquerda foram detidos por militares na cidade de Calama e mantidos incomunicáveis. Oito dias depois, as autoridades emitiram um comunicado: todos os homens foram mortos a tiros no dia anterior quando tentavam escapar depois que o caminhão em que eram transferidos a outra prisão tinha sofrido uma falha mecânica. Não foram dados mais detalhes e tampouco foram devolvidos os corpos.
Foram tantos os corpos não encontrados em todo o território que para designá-los foi criada uma expressão: os desaparecidos.
As famílias das pessoas que desapareceram em menos de um mês em Calama e em outras 15 cidades do país procuraram mais informações durante anos. Depois de restabelecida, em 1990, a democracia no Chile, conseguiram finalmente algumas respostas. Os militares tinham torturado e depois executado 96 pessoas, entre elas os 26 homens de Calama, como parte de uma campanha infame denominada "caravana da morte".
Mas o que aconteceu com os restos? Onde foram parar?
Um dos 96 era Luis Alfonso Moreno, um guarda de segurança de 30 anos, militante do Partido Socialista. Os investigadores ligaram para sua família em janeiro de 2014. Tinham encontrado fragmentos de seu corpo no deserto e identificado de maneira conclusiva.
A família realizou uma cerimônia no Cemitério Geral de Santiago, na qual cobriram com a bandeira chilena o caixão que continha seus ossos. Ao lado do caixão foi colocada uma fotografia em preto e branco do dia de seu casamento em 1969.
Seus familiares contaram histórias que provocaram risos e lágrimas. Alguém tocou o violão e cantaram suas músicas preferidas, o que trouxe ainda mais lembranças. Moreno foi enterrado em uma tumba onde jaziam os restos de outras vítimas do regime de Pinochet.
"Tínhamos perdido as esperanças", confessa Luis Alfonso Moreno, que tinha 3 anos quando seu pai desapareceu. "Pensávamos que imperaria a impunidade. Agora está com seus companheiros."
Erros de identificação
A identificação de Moreno foi realizada pelo Serviço Médico Legal (SML), organismo para análises forenses do Chile, dirigido atualmente por Patricio Bustos. O SML foi adquirindo prestígio e agora pode servir como modelo para organismos similares durante ou depois de um conflito ou desastre natural.
Mas nem sempre foi assim. Há apenas alguns anos, antes de que Bustos passasse a ser diretor, o SML entregou identidades equivocadas de dezenas de pessoas que tinham desaparecido depois de que Pinochet e os militares tomaram o poder. O episódio é lembrado como os erros do "Pátio 29", em referência a uma área do Cemitério Geral, onde foram enterradas as vítimas. Entre 1994 e 2002, o SML afirmou ter identificado 98 corpos do Pátio 29 e entregue os restos às famílias para sua sepultura. Mas em dezenas de casos, o SML indicou mais tarde às famílias que tinha cometido erros de identificação.
Os familiares das 1,2 mil vítimas cujos restos não tinham sido identificados estavam realmente indignados. "Não tínhamos mais confiança no SML", afirma Alicia Lira, que encabeça o Grupo de Familiares de Executados Políticos Sem Entrega de Restos.
Quando o diretor do SML da época renunciou, Bustos, que ocupava um alto cargo no Ministério da Saúde, se apresentou e conseguiu o posto. Bustos começou imediatamente a fazer mudanças. Em seu segundo dia, se reuniu com vários familiares de desaparecidos e disse que ia estabelecer normas mais estritas para acabar com os erros de identificação, estar mais acessível a seus pedidos e assegurar que sua instituição trataria as famílias de forma mais humanitária.
O sangue: uma pista
Em 2007, continuou o esforço por recuperar a confiança dos familiares e o Governo do Chile criou um centro de amostras de DNA que permitiu aos cientistas forenses comparar o DNA dos ossos encontrados com o dos familiares vivos dos desaparecidos. A instituição também realizou acordos com laboratórios estrangeiros de análise genética acreditados e começou a cooperar mais estreitamente com o CICV que possui uma ampla experiência na identificação de restos mortais.
Dois anos mais tarde, o SML iniciou sua primeira campanha pública convidando familiares de desaparecidos para que doassem sangue para ver se seu DNA correspondia com os restos não identificados que já tinham sido encontrados ou que poderiam ser descobertos. O SML recolheu mais de 3,5 mil amostras.
A coleta de sangue é uma tarefa simples. No entanto, para muitos familiares, o processo desperta lembranças dolorosas. "Quando um familiar dá uma amostra de sangue, inevitavelmente se emociona porque sabe que existe a possibilidade de algum dia encontrar seu ente querido", explica Lorena Pizarro, presidenta do Grupo de Familiares de Presos Desaparecidos.
No ano passado, o SML deu um passo mais ao colocar em andamento um novo programa chamado "Uma gota do seu sangue pela verdade e pela justiça", cujo objetivo é chegar não apenas aos familiares dos desaparecidos, mas também a outras pessoas que acreditam que seu familiar também pode ter sido vítima do regime militar.
Desde 2007, o SML identificou definitivamente 138 restos, o que significa que 138 famílias têm agora um lugar para visitar seus entes queridos. Destes, 58 se encontravam entre os que previamente tinham sido identificados de forma equivocada.
Apesar das conquistas, ainda resta muito por fazer. Bustos observa que o SML ainda tem muito trabalho pela frente para ganhar a confiança dos que perderam seus entes queridos; o problema não foi conseguir que os familiares doassem amostras de sangue, mas encontrar os restos dos desaparecidos.
O exército e a polícia secreta ocultaram deliberadamente os restos de muitas vítimas, segundo os registros revelados durante várias investigações sobre o regime militar. Em uma famosa operação, cujo nome em código era "Retirada de Televisões", o exército desenterrou e transportou restos mortais a fim de ocultar provas. Alguns desses restos foram exumados de fossas secretas, levados a aviões militares e lançados ao mar.
Os trabalhadores forenses estão mais bem preparados e têm uma visão humanitária holística. Como consequência, conseguem cada vez melhores resultados
Mas quando os restos mortais são descobertos, as amostras de sangue de familiares aumentam consideravelmente as possibilidades de uma comparação definitiva. Utilizar o DNA pode ser importante, assegura Olga Barragán, assessora forense da delegação regional do CICV em Brasília, que abarca Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Mas o DNA é apenas uma peça do quebra-cabeças.
"Tentamos obter a maior quantidade de informação possível das famílias", acrescenta Barragán. "A cor dos olhos, a pele, o sexo, o peso e a altura, os antecedentes dentários, as cirurgias, os implantes ou as radiografias. Na região, a ciência forense fez grandes avanços nos últimos anos, não apenas porque a tecnologia melhorou, mas também porque os trabalhadores forenses estão mais bem preparados e têm uma visão humanitária holística. Como consequência, conseguem cada vez melhores resultados."
No entanto, o trabalho forense do CICV no Chile não se limita aos desaparecidos. Também ajudou o SML depois do terremoto de 2010, no qual morreram mais de 500 pessoas, e do incêndio em uma prisão, também em 2010, no qual faleceram 81 presos.
E em outros dois casos muito famosos, o CICV atuou como observador neutro depois que as autoridades judiciais chilenas ordenaram a exumação do poeta chileno Pablo Neruda e do ex-presidente Salvador Allende, a fim de determinar definitivamente as causas da morte dos dois. O papel do CICV na exumação de Neruda, realizada pelo serviço de medicina legal do Chile, com a ajuda de outros especialistas chilenos e internacionais, foi o de velar para que a exumação se mantivesse dentro das normas internacionais e para que todas as partes envolvidas no pedido respeitassem os direitos e a dignidade das pessoas falecidas e de seus familiares.
Das fichas às amostras de DNA
No final do ano passado, o CICV se transformou em uma das quatro instituições avalistas do armazenamento, em Genebra (Suíça), em forma permanente de amostras de DNA de desaparecidos do Chile, o que dá uma nova dimensão a seu compromisso. "É a primeira vez que o CICV recebe amostras de DNA para seu uso futuro na identificação de restos mortais com fins estritamente humanitários", declara Morris Tidball-Binz, diretor da Unidade de Serviços Forenses do CICV, com sede em Genebra (Suíça).
Quando um familiar dá uma amostra de sangue, inevitavelmente se emociona porque sente que existe a possibilidade de encontrar algum dia seu ente querido.
Desde a I Guerra Mundial, o CICV utilizou a informação pessoal para restabelecer o contato entre familiares separados por um conflito. Há cem anos, esta informação era anotada em fichas organizadas em arquivos que ficavam em porões. Mais tarde, os registros passaram a ser feitos em redes informáticas. O armazenamento de amostras de DNA não tem precedentes.
Para Pizarro, este acordo com uma organização internacional mostra que as famílias dos desaparecidos no Chile "não estão sozinhas", e que a busca de respostas é uma responsabilidade mundial. "A esperança é que, mesmo depois de centenas de anos, vamos ter um lugar onde voltar para identificar nossos entes queridos", explica.
A Torre
Encontrar respostas em nome dos desaparecidos é, para Bustos, uma motivação profunda que se apoia em sua própria experiência pessoal que começou em 10 de setembro de 1975, quando militava na oposição clandestina e saía de seu trabalho em Santiago. Foi agarrado por três agentes, jogado contra a parede, algemado, amordaçado e teve os olhos vendados, depois foi empurrado dentro de um carro que estava esperando. Foi golpeado durante 30 minutos até que chegaram a seu destino: Villa Grimaldi, o principal centro de tortura da polícia secreta.
A polícia secreta estava procurando Bustos durante meses e esteve a ponto de prendê-lo várias vezes, mas ele mudava de residência constantemente, servindo-se de oito pseudônimos.
No momento do golpe, Bustos era presidente do centro de estudantes de medicina da Universidade de Concepción, um centro de militantes de esquerda. Depois do golpe, o governo militar o expulsou da universidade. Bustos foi para Santiago com o objetivo de se unir ao movimento de resistência clandestino e logo dirigia uma equipe médica móvel que se ocupava das pessoas que também estavam na clandestinidade.
Bustos relata que, em Villa Grimaldi, foi colocado nu sobre as molas de uma cama conhecida como "a churrasqueira". Ali, foi interrogado e recebeu choques elétricos.
Foi arrastado depois até um edifício estreito de 40 metros de altura, conhecida como "a Torre". Ali, foi suspenso em uma barra metálica colocada atrás dos joelhos com os pulsos e os tornozelos amarrados e de cabeça para baixo. Era mantido nessa posição, chamada de "pau de arara" durante horas.
Bustos conta que, durante os dois meses seguintes, em várias ocasiões foi submetido ao "pau de arara" e à "churrasqueira", às vezes junto com sua mulher, que era dentista e também estava na clandestinidade até ser detida.
Em novembro de 1975, Bustos foi transferido a Cuatro Álamos, onde a polícia secreta frequentemente colocava os presos políticos para que se recuperassem das torturas antes de decidir seu destino final. Ali conheceu José Zalaquett, advogado especialista em direitos humanos que também tinha sido preso. "Suas possibilidades de sobreviver eram mínimas", lembra Zalaquett, pois, pela importância de Bustos para o movimento de resistência, ele significava um perigo para o regime militar.
Homens com insígnias de cor vermelho e branco
A notícia da existência de Cuatro Álamos vazou. A pessoa que ficou sabendo foi Sergio Nessi, delegado-geral do CICV para a América Latina. Decidido a visitá-lo, solicitou uma permissão para isso, autorização que foi dada a contragosto. Era a primeira vez que se autorizava uma pessoa de fora a visitar o lugar.
Nessi e outros dois delegados do CICV — Rolf Jenny e Willy Corthay — entraram em Cuatro Álamos no dia 9 de dezembro de 1975. Ali, conversaram com Bustos e outros presos políticos na sala comum.
Nessi e Jenny registraram os nomes de cada homem e Corthay examinou suas feridas, especialmente as de Bustos. Quase nem conseguia andar. Os delegados do CICV passaram cerca de 90 minutos com os presos e voltaram no dia seguinte com medicamentos para Bustos e provisões para os outros detidos.
No entanto, o mais importante era que o CICV sabia da existência dos presos políticos e podia exigir sua proteção. "Quando o CICV registrou seus dados, sua vida se encontrava a salvo dentro do que era possível", observa Zalaquett, que mais tarde fez parte da Comissão da Verdade e Reconciliação do Chile em 1991.
Dívidas pendentes
Finalmente, em dezembro de 1976, Bustos foi liberado e expulso para a Itália. Ali reconstruiu sua vida enquanto trabalhava como médico. Em 1991, depois do restabelecimento da democracia, voltou ao Chile. Nessa época, tinha procurado Nessi na Europa para agradecer pessoalmente.
"O CICV foi um fator importante para salvar minha vida", afirma Bustos. Também atribui isso à sua família e a outros presos políticos, que depois de serem libertados divulgaram seu paradeiro.
Em uma recente visita a Villa Grimaldi, que agora é um centro de memória, sentou-se nos degraus em frente à Torre. "É difícil estar aqui, mas encontrei a forma para fazer isso", explica, e acrescenta que visita Villa Grimaldi várias vezes por ano em memória dos que morreram ou desapareceram ali.
Bustos diz que sente uma profunda sensação de tranquilidade quando o SML identifica os restos de uma vítima desaparecida. Quase sempre participa da cerimônia na qual se faz a entrega dos restos a uma família, assegurando-se de que os funcionários do organismo expliquem a prova com todos os detalhes. Mas fica triste de que tenham conseguido identificar apenas 10% das pessoas que ainda estão desaparecidas.
O CICV foi um fator importante para salvar minha vida
Marta Vega é uma das pessoas que continua procurando um familiar. Seu pai Juan, ativista do Partido Comunista, desapareceu em 1976, quando ela tinha 17 anos. "Não temos ideia de onde está", afirma.
Marta, seus irmãos e primos doaram sangue ao SML. "Estou tranquila pois se os restos deles aparecerem amanhã por acaso, temos as amostras para identificá-lo", diz e acrescenta: "Bustos fez um bom trabalho. Qualquer necessidade ou preocupação que temos, ele se ocupa de dar uma solução."
Bustos diz que não congratula a família quando, nos dias bons, o SML consegue entregar os restos de uma vítima desaparecida junto com uma prova definitiva. "É um gesto humanitário – afirma –, algo que o país precisa fazer, algo que o SML precisa fazer, para que haja justiça. É importante lembrar que, como sociedade, ainda temos dívidas pendentes."
Tyler Bridges
Jornalista radicado em Lima (Peru)
Esta reportagem foi originalmente publicada na Revista da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, disponível em espanhol, inglês, francês e chinês.