Confidencialidade - Perguntas e Respostas

24 janeiro 2018

Nesta era das redes sociais, em que cada um de nós pode denunciar violações, o enfoque de confidencialidade do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) pode salvar vidas.

O CICV age diretamente no terreno nas zonas de conflito. Prestamos assistência às pessoas afetadas pelos combates na forma de alimentos ou assistência à saúde, ajudando a reconstruir infraestrutura que foi destruída. Também nos esforçamos para promover o respeito pelo Direito Internacional Humanitário (DIH).

Com a finalidade de obter acesso às comunidades afetadas, estabelecemos a confiança mediante um diálogo confidencial com todas as partes de um conflito armado ou todos envolvidos em outras situações de violência. A nossa ênfase na confidencialidade é, às vezes, criticada, mas a consideramos crucial para realizarmos o nosso trabalho em benefício das pessoas afetadas em meio aos confrontos. O diretor de Operações do CICV, Dominik Stillhart, explica.


Vivemos em um mundo onde as pessoas têm acesso imediato a fatos, imagens e histórias, em que elas veem as provas de abusos em tempo real. Em um mundo de redes sociais, a confidencialidade é relevante mesmo hoje em dia?


As redes sociais e a tecnologia móvel mudaram definitivamente como as pessoas veem o mundo, trabalham e entendem os fatos ao seu redor. E mudou para nós também - no CICV usamos as redes todos os dias para contar as histórias das pessoas que ajudamos, explicar o nosso trabalho e falar das questões que são importantes para nós.

Mas em relação às nossas operações no terreno, a confidencialidade permanece absolutamente crítica. É a chave que nos abre as portas que, de outro modo, estariam fechadas. Sem a confidencialidade, corremos o risco de não ter acesso às pessoas necessitadas nem chegar aos lugares onde precisamos trabalhar. Significa que podemos falar de modo aberto com as pessoas, grupos e partes de um conflito armado ou com aqueles envolvidos em outras situações de violência que, de outra forma, poderiam não estar dispostos a falar com o CICV. Assim, podemos estabelecer relações que são essenciais para encontrar soluções e possibilitar a realização das nossas atividades. Ao adotar um enfoque confidencial, evitamos os riscos de politizar as questões em um debate público, protegendo a segurança das nossas equipes no terreno e das comunidades que assistimos. Portanto, nesse sentido, a confidencialidade é absolutamente relevante nos dias de hoje.

Acrescentaria que a nossa prática e política para essa questão possuem raízes profundas, sendo derivadas diretamente dos princípios de neutralidade e independência.


Não seria melhor publicar as denúncias de violações específicas? Por que o CICV tem tanta precaução com torná-las públicas?


O nosso enfoque sempre será ajudar as vítimas dos conflitos armados e outras situações de violência no terreno. Sabemos, com a experiência, que o diálogo confidencial é vital para isso. A confidencialidade significa que podemos manter um diálogo contínuo com todos os lados em combate, podendo, assim, ajudar a lidar com as violações dos abusos enquanto ocorrem, e não somente depois dos fatos.

No entanto, a confidencialidade não é o mesmo que complacência nem é incondicional. Em algumas questões falamos publicamente e podemos fazer denúncias contra uma parte específica. Mas isso somente é feito quando tivermos esgotado todos os outros meios razoáveis de influência dessa parte, e quando esses meios não produzirem o efeito desejado.

Para nós, esta decisão nunca é tomada levianamente já que poderia minar a proteção e a assistência que prestamos. Deve-se lembrar que trabalhamos em muitos lugares onde o escrutínio externo - para não falar do criticismo público - não é bem-vindo de nenhuma maneira. Qualquer decisão de falar sobre as alegações ou denunciar publicamente as partes deve considerar o risco que isso representa às pessoas que tentamos ajudar, com o fato de que não poderemos oferecer a proteção e a assistência que consistem na nossa finalidade principal. Portanto, para nós, a confidencialidade não significa que ficamos quietos. Ao invés disso, quer dizer que estamos em diálogo constante com todas as partes tentando resolver as questões assim que ocorrerem.


Existem circunstâncias em que o CICV faz denúncias públicas?

A discrição claramente tem os seus limites e nos reservamos o direito de falar publicamente, divulgar as nossas constatações ou interromper o nosso trabalho em casos excepcionais. Caso o nosso diálogo bilateral confidencial não obtiver resultados, podemos compartilhar as nossas preocupações com terceiros com a finalidade de influenciar o comportamento das partes de um conflito armado ou aqueles envolvidos em outras situações de violência, ou mesmo fazer denúncias públicas.

Porém, como disse anteriormente, este enfoque possui riscos verdadeiros para as pessoas que tentamos ajudar e elas são a nossa prioridade. Para que possamos falar publicamente, várias condições específicas deverão existir: as violações deverão ser em grande escala e reiteradas, ou provavelmente serão reiteradas; as nossas equipes deverão ter testemunhado as violações com os seus próprios olhos, ou, pelo menos, possuir informações de fontes confiáveis e verificáveis; as representações bilaterais confidenciais perante as partes deverão ter fracassado em impedir as violações; e denunciar o fato publicamente deverá ser no interesse das pessoas afetadas ou ameaçadas.

Também creio ser necessário comentar que costumamos oferecer avaliações sobre a situação humanitária nos países afetados por conflitos em todo o mundo, chamando a atenção, com frequência, sobre as questões humanitárias. Por exemplo, podemos emitir um comunicado de imprensa sobre a necessidade vital de proteger os estabelecimentos e profissionais de saúde durante os conflitos armados e outras situações de violência, ou podemos trabalhar com jornalistas e fotógrafos para destacar uma situação humanitária particularmente difícil. Também utilizamos as redes sociais para difundir esse tipo de informações todos os dias.

O senhor acredita que este enfoque da confidencialidade sofre pressões?


Existe pressão e creio que está relacionada ao modo distinto em que as pessoas hoje em dia esperam obter informações e notícias. As pessoas hoje querem ter a informação sobre as atrocidades que são cometidas em conflitos armados e outras situações de violência no momento em que escutam falar delas. Evidentemente, o interesse e o repúdio aos abusos e violações não são uma novidade, mas atualmente existe uma grande quantidade de fontes de informações.

Como disse antes, vemos a confidencialidade como essencial para lidar com as possíveis violações das normas e no melhor interesse das vítimas de conflitos armados e outras situações de violência. A confidencialidade nos permite criar confiança, obter acesso e garantir a segurança dos nossos funcionários e das pessoas que tentamos ajudar. Claro que sabemos que o nosso enfoque não é o único método para resolver a questão dos abusos do Direito Internacional Humanitário (DIH). Vemos os outros métodos com maior publicidade como complementares ao nosso foco na confidencialidade, que consiste em uma abordagem testada e aprovada para nos permitir ajudar as pessoas afetadas, quando os fatos ocorrem, e não posteriormente.


Qual a relação entre o enfoque confidencial e o julgamento de crimes internacionais?


O julgamento de crimes internacionais é fundamental. Como guardião do Direito Internacional Humanitário, o CICV apoia os processos que visam julgar esses crimes no âmbito da legislação nacional, bem como estabelecer tribunais penais internacionais. Quando o CICV se comunica de modo confidencial com as partes de um conflito armado, instamos para que previnam ou cessem as violações atuais ou em potenciais, evitem que elas voltem a ocorrer e punam os responsáveis por elas.

No entanto, essas intervenções confidenciais e em tempo real não serão utilizadas nos procedimentos legais. Pretende-se, outrossim, que ajudem a chamar a atenção de pessoas, grupos ou partes envolvidas em um conflito armado às nossas preocupações, lidando com elas através das suas próprias investigações ou outras medidas, de modo a modificar determinados comportamentos e o respeito pelo DIH. O conteúdo dos nossos diálogos com as partes, ou outros documentos que sejam elaborados, não têm a finalidade de serem usados em procedimentos legais. Caso isso ocorresse, colocaria em risco o diálogo confidencial, que é crucial para a nossa capacidade de operar e prestar assistência e proteção no terreno. Este é o motivo pelo qual não participamos nos procedimentos ou falamos publicamente sobre casos específicos, mesmo apoiando iniciativas que visam julgar e punir os responsáveis pelas violações graves do Direito Internacional Humanitário.


O enfoque confidencial do CICV possui alguma proteção jurídica?


É realmente importante que o nosso enfoque à confidencialidade seja compreendido e respeitado. Felizmente, essa importância foi amplamente reconhecida no âmbito nacional e internacional.

Nesse último, o Tribunal Penal Internacional, o Mecanismo da ONU para os Tribunais Penais Internacionais, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia, o Tribunal Penal Internacional para a Ruanda, o Tribunal Especial para o Líbano, as Câmaras Especializadas para o Kosovo e a Corte Especial para Serra Leoa reconheceram, tanto nos casos em que se aplica jurisprudência como nos que seguem procedimentos e provas, que o CICV possui o direito de se recusar a fornecer informações confidenciais. A nenhuma outra organização foi concedido este direito. A importância da confidencialidade é, desse modo, reconhecida como basilar para o nosso trabalho. No âmbito nacional, quase cem países propiciaram salvaguardas legais específicas para a confidencialidade do CICV, com a adoção de legislação ou um acordo bilateral. As leis e acordos costumam estipular que o CICV e os seus funcionários não podem ser chamados para dispor provas.

Além disso, como entrega os seus relatórios às partes de modo confidencial, o CICV possui o direito de insistir que as informações contidas neles não sejam reveladas pelos destinatários.