Mesmo a guerra tem limites: profissionais e estabelecimentos de saúde devem ser protegidos

03 maio 2016

Discurso proferido por Peter Maurer, presidente do CICV, reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, 3 de maio de 2016, Nova York, EUA

Mesmo a guerra tem limites, porque guerra sem limites são guerras sem fim. Os profissionais e estabelecimentos de saúde estão na fronteira ulterior desse limites.


Aleppo, Síria, um hospital depois de ser bombardeado, 3 de maio de 2016.

Alguns meses atrás, parei em frente a um prédio de quatro andares.

Era mais a carcaça de um edifício, completamente arrasado, queimado, destruído, com cabos de aço saindo para fora das estruturas das paredes, escombros por todos os lados.

A única indicação de que foi alguma vez um hospital era uma lâmpada cirúrgica, ainda milagrosamente pendurada no teto do segundo andar.

Eu estava na Síria, mas podia perfeitamente estar no Afeganistão, Sudão do Sul ou Iêmen.

É um paradoxo pungente que, quando mais necessária é a assistência à saúde, menos disponível ela está.

Em uma guerra, as pessoas ficam feridas, desnutridas e doentes. Ainda assim, quanto maior a necessidade de tratamento médico, mais difícil é de obtê-lo, já que os poucos lugares e pessoas que podem ajudar são atacados.

O CICV constatou que, em três anos, foram cometidos 2,4 mil ataques contra pacientes, profissionais, estabelecimentos e veículos de saúde em 11 países afetados por conflitos. Isso é mais do que dois ataques por dia, todos os dias, durante três anos. E somente analisamos os dados de 11 países.

No ano passado, a Organização Mundial de Saúde anunciou que 60% dos estabelecimentos de saúde na Síria foram danificados ou destruídos, enquanto que 25 mil pessoas são feridas todos os meses.

No Iêmen, o Coordenador de Socorro em Emergências da ONU, Stephen O'Brien, afirmou que, depois de um ano de combates, um quarto dos serviços de saúde foi destruído ou fechado.

No Afeganistão, em 2015, o CICV registrou um aumento de 50% nos incidentes contra as equipes e estabelecimentos, comparado com o ano anterior. Isso significa que houve um incidente a cada três dias, sem considerar os casos que não foram relatados.

Nem sempre, mas com frequência, esses incidentes, ataques e destruições constituem uma violação total do Direito Internacional Humanitário (DIH).

Não é coincidência que a primeira Convenção de Genebra, de 1864, refere-se à melhoria das condições dos feridos e doentes. Para ser preciso, dos feridos e doentes das forças armadas em campanha.

À medida que os conflitos armados passaram de campo abertos a áreas urbanas, de pistolas a bombardeios e ataques em massa por forças aéreas, os feridos e doentes não são mais somente os que usam uniformes.

Incluem agora o caso de Ramish, que tinha nove anos quando pisou em uma mina no Afeganistão. Incluem o de Mathilde, que foi estuprada por combatentes, enquanto fazia a colheita junto com o marido na República Democrático do Congo. Incluem a mulher de Khaled, na Síria, que morreu no parto porque não havia parteira ou médico para acompanhá-la. Incluem todos os pacientes anônimos no hospital que mencionei no início.

Estes são apenas alguns dos exemplos dos seres humanos e suas histórias que os funcionários e voluntários do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho se deparam no terreno, todos os dias, no mundo inteiro.

Eles mostram o impacto da guerra nas pessoas, mas, ainda mais importante, demonstram que o tratamento médico e a assistência à saúde de um modo geral são cruciais em tempo de guerra.

O Direito Internacional Humanitário (DIH), portanto, protege especificamente os profissionais, estabelecimentos e veículos de saúde, precisamente porque estes são indispensáveis em tempo de guerra. Não fazê-lo acarreta o perigo de multiplicar o impacto nos sistemas de saúde que, por sua vez, correm o perigo de se desmoronarem, com um impacto muito além das respectivas regiões, um fardo para as gerações futuras.

Atacar um hospital, ameaçar um médico, coagir um enfermeiro a dar tratamento preferencial a combatentes armados, sequestrar ambulâncias, usar pacientes como escudos humanos - não são danos colaterais. Não são tristes realidades às quais devemos nos acostumar.

São abominações nos combates e tendências que devem ser interrompidas.

Os efeitos diretos nos profissionais, estabelecimentos e veículos de saúde são graves; no entanto, os indiretos são ainda mais profundos.

Quando um hospital de MSF na província de Saada, no Iêmen, foi destruído em outubro de 2015, isso implicou que 200 mil pessoas perdessem automaticamente o acesso ao atendimento médico vital.

Depois de cinco anos de guerra na Síria, a cidade inteira de Rastan tem apenas um dentista - para 120 mil pessoas.

Atualmente, a realidade de muitos países devastados pela guerra é que, se não morrer de uma bomba ou um enfrentamento, poderá morrer por falta de equipamento de diálise, remédios para diabetes, antibióticos e tratamento para cardíacos.

As taxas de mortes por doenças infecciosas e não infecciosas quase sempre ultrapassam as de mortes por armas. Isso, para nós humanitários, é um indicador de que não estamos enfrentando interrupções temporárias, mas a desintegração do sistema. Não se trata apenas de um hospital ou um médico afetado: o sistema de saúde inteiro se desmorona com os ataques aos profissionais e estabelecimentos de saúde.

O setor de saúde - junto com a infraestrutura hídrica, energética e de educação - é um dos primeiros a colapsar com o impacto cumulativo da guerra, em particular em áreas urbanas. Em lugares onde uma muitas pessoas vivem em grande concentração e dependem da infraestrutura e dos serviços públicos que estão interconectados, os efeitos dos ataques e da destruição são sentidos com mais intensidade.

O CICV, em um estudo recente, resumiu a sua experiência com a desintegração sucessiva dos serviços urbanos para a população nos conflitos atuais. A constatação do estudo é que a assistência humanitária é sempre insuficiente para lidar com o desmantelamento progressivo dos serviços sociais com o tempo; o que é necessário é uma mudança fundamental do comportamento na guerra.

As consequências humanitárias do impacto cumulativo resultantes, quando a infraestrutura básica - como hospitais - é aniquilada, devem ser levadas em consideração ao contrapor a necessidade militar com a proteção dos civis.

Não é verdade que os princípios orientadores da condução das hostilidades na guerra estejam errados ou desatualizados: eles devem ser, ao invés, interpretados de modo distinto nos contextos atuais. Uma ênfase muito maior deve ser dada ao impacto nos civis e na sua proteção, de modo a se opor à tendência de uma década, mediante a qual os civis carregam o maior fardo dos conflito armados ou são inclusive o próprio objetivo dos ataques.

Além dos efeitos imediatos, quando os ataques e a destruição de infraestruturas de saúde ocorrem, os esforços para reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materno-infantil e combater as doenças como a pólio são reduzidos a pó em questões de segundos. A reconstrução do que foi destruído levará anos, se não décadas. O Direito Internacional Humanitário e a ação humanitária têm uma função essencial de garantir o progresso no desenvolvimento. Se forem violados, esta função se desmantela e os serviços de saúde ficam particularmente vulneráveis.

Gostaria de parabenizar o Conselho pela aprovação hoje da Resolução S/2016/380. Eu sei, por experiência própria como representante suíço na ONU, que cada palavra - cada vírgula para ser exato - foi cuidadosamente considerada e negociada.

E o resultado é potente: em linguagem clara, as senhores e os senhores ressaltam a importância do Direito Internacional Humanitário (DIH), instam os Estados e todas as partes de conflitos armados a cumprirem com as suas obrigações e elaborarem medidas eficazes para proteger a vida das pessoas ao prevenir e lidar com a violência contra os profissionais, estabelecimentos e veículos de saúde, assim como contra os profissionais humanitários que participam exclusivamente da missão médica.

Esta resolução marca um passo enorme para os esforços da comunidade internacional em chamar a atenção a um problema que, de outro modo, arriscaríamos ficar acostumados pela simples frequência em que ocorrem.

Ainda não estamos dessensibilizados por estes ataques porque ainda nos indignamos com eles.

Mas depois da indignação vem a ação, não a complacência.

Assim, embora esta resolução seja um passo importante, não deve marcar o fim de um processo político, mas o começo de um esforço prático.

Peço que aproveitem o ímpeto desta resolução.

Os Estados e os grupos armados não estatais devem respeitar as suas obrigações perante o DIH.

Todos sabem que o CICV é uma instituição inerentemente pragmática. Reconhecemos os dilemas que existem em tempo de guerra e reconhecemos o difícil equilíbrio entre a necessidade militar e o imperativo humanitário, entre os princípios e pragmatismo, entre as preocupações de curto e longo prazo, entre o nosso papel de defender as vítimas e como interlocutores de partes em conflito para mitigar os efeitos da guerra nos civis e na infraestrutura civil.

Estamos comprometidos com o pragmatismo com base em princípios: normas e responsabilidade perante estas normas são apenas um lado da moeda; as condenações são antes de mais nada atos políticos e não humanitários. Como humanitários, estabelecemos diálogo para mudar comportamentos, prevenir violações do DIH e, desse modo, proteger as pessoas.

Como se sabe, estabelecemos um diálogo com todos que podem fazer a diferença e os primeiros são os próprios profissionais de saúde.

Portanto, junto com a Associação Médica Mundial, o Comitê de Medicina Militar, o Conselho Internacional de Enfermagem, a Federação Internacional Farmacêutica, a Federação Internacional de Estudantes de Medicina e a Confederação Mundial de Fisioterapia, elaboramos princípios éticos de assistência à saúde em tempos de conflito armado e outras emergências.

Essas organizações representam 30 milhões de profissionais de saúde dos âmbitos civil e militar, que agora possuem uma ferramenta prática para guiá-los no trabalho diário.

Na realidade, vários membros deste Conselho já conhecem como trabalhamos na prática, porque desenvolvemos, em conjunto, uma relação construtiva de grande envolvimento operacional com feedback, diálogo e medidas corretivas relativas à condução das hostilidades.

Estou aqui hoje não para mostrar a nossa indignação, mas para oferecer a ajuda do CICV e um diálogo construtivo para sair da profunda crise contemporânea dos sistemas de saúde em conflitos armados.

Gostaria de propor aos membros do Conselho cinco linhas de trabalho para assegurar que a resolução adotada hoje não fique somente no papel, mas também seja um conceito a ser respeitado em meio à guerra:

  1. Alinhar a legislação nacional e incentivar outros Estados a seguirem o exemplo, em conformidade com as obrigações perante o direito internacional e com os princípios éticos da área de saúde;
  2. Formar os militares para reduzir as interrupções dos serviços de saúde, ao mesmo tempo em que preservam as preocupações legítimas de segurança;
  3. Apoiar as organizações locais de saúde para manter um serviço mínimo, mediante soluções adaptadas ao contexto local;
  4. Melhorar a proteção legal dos pacientes e profissionais de saúde, ao assegurar o uso adequado de emblemas protetores, aumentar a proteção legal da ética médica e lidar com as violações;
  5. Assegurar que todas as transferências de armas sejam feitas com uma garantia de respeito pelo DIH e dirigir o treinamento para concentrar na proteção das equipes e estabelecimentos de saúde.

Como uma organização que trabalha na linha de frente dos conflitos, consideramos a resolução que foi adotada como um sinal político importante e um incentivo para ter repercussões no terreno. Como ator neutro, imparcial e independente, estamos conscientes de que não é a nossa tarefa de usar a resolução, ou o DIH em geral, como parte de um argumento público de indiciamento pelas violações das normas.

As negociações nas linhas de frente precisarão de negociadores habilidosos que buscam o consentimento das partes para criar um ambiente no qual os principais objetivos desta resolução possam ser concretizados e implementados mediante acordos práticos entre os beligerantes. Devemos ter consciência da tensão entre a orientação política que o Conselho oferece hoje em um assunto da maior importância e os desafios práticos nos contextos de guerra que enquadram o trabalho dos atores humanitários no terreno. Isso é um motivo adicional, se houver necessidade, para que uma troca regular entre este Conselho e as organizações na linha de frente como MSF e o CICV seja da maior importância.

Contei aqui sobre o hospital destruído que vi na Síria alguns meses atrás. O que não disse foi que, desde a destruição, os médicos, enfermeiros e voluntários continuam trabalhando no porão do hospital.

Um antigo lugar de estoque de material foi transformado em uma mini-versão de um hospital. Em um depósito, bebês prematuros encontram-se nas poucas incubadoras mantidas por geradores que não foram destruídas pelo bombardeio. O hospital pode ter sido destruído, mas o princípio de humanidade ainda vive.

Humanidade na guerra é o que pedimos Mesmo a guerra tem limites, porque guerra sem limites são guerras sem fim. Os profissionais e estabelecimentos de saúde estão na fronteira ulterior desse limites. Hoje, com esta resolução, as senhoras e os senhores reafirmaram a relevância das normas da guerra, o consenso humanitário básico consagrado nas Convenções de Genebra.

Pedir que elas sejam respeitadas, com medidas práticas, é o passo mais decisivo que o Conselho poderá tomar para garantir que o princípio de humanidade esteja presente na guerra de modo real e não apenas como um ideal.