Declaração

Passar da indignação à ação para prevenir o sofrimento dos civis

Presidente do CICV: discurso no evento da AGNU sobre proteção dos civis e respeito pelo DIH

Prezados colegas, talvez não existam preocupações maiores para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) que a proteção dos civis e assegurar o respeito pelo Direito Internacional Humanitário (DIH). O CICV observa, muito próximo às linhas de frente, o que acontece quando o DIH é violado: prisioneiros torturados e mortos, profissionais humanitários assassinados, áreas civis bombardeadas indiscriminadamente.

A pergunta crucial que permanece é: como passar da indignação à ação?

O CICV e a Suíça vêm liderando um processo formal com os Estados sobre o Fortalecimento do Respeito pelo DIH nos preparativos para a 33ª Conferência Internacional do Movimento da Cruz Vermelha no próximo ano. Este será um momento decisivo para reforçar o apoio ao Direito Internacional Humanitário, de modo apolítico, voluntário e com bases em consenso. Ficamos encorajados pela participação ativa dos Estados no processo e pedimos aos membros da comunidade internacional que sejam ambiciosos nos seus compromissos.

As dinâmicas dos conflitos passaram por transformações rápidas e profundas nos últimos anos. E o resultado que vemos é que mais pessoas são afetadas, por mais tempo, com necessidades mais profundas desde comida, água e abrigo até serviços de saúde e oportunidades econômicas. Os conflitos e seus protagonistas cruzam as fronteiras dos países. Os conflitos são prolongados. As batalhas são travadas em áreas populosas, colocando em risco demasiadas vidas civis e destruindo infraestrutura vital. Um grande variedade de exércitos, forças especiais, grupos armados e facções criminosas combatem atualmente – diretamente ou por procuração, aberta ou secretamente. Pesquisa do CICV mostra que mais grupos armados surgiram nos últimos seis anos do que nas seis décadas anteriores.

As guerras normalmente envolvem parceiros e aliados – acarretando uma diluição das responsabilidades, fragmentação das cadeias de comando e fluxo de armas não controlado. Isso só vem a aumentar o clima de impunidade, causando ainda mais sofrimento. As parcerias são estratégias de risco, também para os Estados – riscos políticos e de reputação, bem como perigo de que o seu apoio seja redirecionado ou utilizado nas violações do DIH.

Nesse contexto, precisamos encontrar modos de influenciar o comportamento dos beligerantes. Vejo que há novas oportunidades para trabalhar de modo distinto com dois grupos em particular: grupos armados não estatais e os Estados que apoiam as partes em conflito.

O CICV possui o mandato para dialogar com todas as partes de um conflito, esforçando-se para interagir com uma quantidade cada vez mais complexa de grupos armados não estatais. Atualmente, estamos em contato com aproximadamente 200 grupos no mundo inteiro, relacionado com as nossas operações ou nossas preocupações humanitárias; e estamos descobrindo que a estrutura desses grupos faz com que precisemos de novos enfoques.

A nossa recente e inovadora pesquisa sobre os fatores que motivam as restrições na guerra nos evidenciou de modo inédito como os membros dos grupos armados estatais e não estatais são influenciados. Os resultados confirmam que a nossa abordagem de treinar o DIH com as forças armadas estatais tradicionais e hierarquizadas faz a diferença na conduta no campo de batalha.

... mas, demostrou igualmente que um enfoque diferente é necessário para grupos descentralizados, especialmente os grupos armados não estatais. Esses grupos são influenciados por estruturas de comando, mas também por muitos outros fatores – comunitários, políticos, espirituais. Precisamos fazer mais para influenciar essas redes e nos níveis informais. Enquanto que as normas são vitais para estabelecer padrões, o relatório recomenda que o CICV incentive a internalização das normas na identidade dos combatentes, de passar do "é contra as leis" para valores como "não é quem eu sou".

Prezados colegas, já que a tendência em direção às guerras com parcerias e alianças vem aumentando, estou convencido que isso nos oferece uma nova oportunidade: existe um potencial a ser descoberto para os Estados utilizarem positivamente a sua influência para proteger melhor as vítimas dos conflitos.

Elaboramos uma agenda para a ação, baseada nas nossas análises no terreno, que estabelece as medidas práticas que os Estados podem tomar para ajudar as partes que eles apoiam a adotarem condutas que respeitem as normas, estipularem salvaguardas e tomarem medidas mitigatórias. Poucas formas de apoio apresentam um risco maior às vítimas dos conflitos armados do que o fornecimento de armas. Os Estados que apoiam as partes em conflito não devem transferir armas se houver um risco evidente de violações do direito internacional.

Outras medidas incluem:

  • Instruir adequadamente as normas dos conflitos armados;
  • Assegurar a supervisão constante da conduta dos aliados, por exemplo, em operações militares;
  • Esclarecer as responsabilidade, nas linhas de comando, os procedimentos para a proteção das vítimas dos conflitos armados e os canais de comunicação;
  • Vetar recrutas, incluindo a exclusão do recrutamento de pessoas menores de 18 anos ou aqueles que cometeram violações do DIH ou outros crimes graves;
  • Treinar a apoiar os aliados para tratar os detidos de maneira humana, oferecer-lhes garantias judiciais e permitir que o CICV visite as pessoas privadas de liberdade.

Visamos entender melhor os desafios na implementação dessas medidas práticas e refinar as nossas recomendações com o intercâmbio de práticas e lições aprendidas com os Estados.

Prezados colegas, devemos estar alertas com o grande sofrimento causado pelas violações do DIH e qualquer tipo de impunidade derivada delas, ou com o questionamento dos nossos valores humanitários. Não importa quão complexo, prolongado ou fragmentado for um conflito armado.

É a tarefa da comunidade internacional de não deixar que a indignação se converta em inércia, tomando, porém, medidas práticas para prevenir o sofrimento dos civis nos conflitos no mundo inteiro.

Dez recomendações práticas para os Estados que apoiam as partes em conflitos:

  1. Adicionar salvaguardas para as transferências de armas. Poucas formas de apoio apresentam um risco maior às vítimas dos conflitos armados do que o fornecimento de armas. Ainda assim as transferências de armas estão nos níveis mais altos desde o fim da Guerra Fria. Os Estados que apoiam as partes em conflitos armados não devem transferir armas se houver um risco evidente de violações do direito internacional. Devem assegurar que os recipientes sejam plenamente treinados no seu uso e armazenamento de modo responsável. Com os inúmeros ataques contra a assistência à saúde, pedimos a todos os Estados que cumpram com os seus compromissos internacionais e façam da proteção da assistência à saúde pelos seus parceiros e eles mesmo uma prioridade.
  2. Treinar e instruir. Uma instrução adequada das normas dos conflitos armados deve ser adaptada ao idioma e educação dos combatentes e repetidas regularmente. A instrução sobre conduta legal de acordo com o DIH deve ser baseada de outros marcos jurídicos relevantes, como o Direito Islâmico.
  3. Assegurar a proteção dos detidos. Os Estados devem treinar e apoiar as partes em conflito para tratar os detidos de maneira humana, oferecer-lhes garantias judiciais – um desafio particular no caso dos grupos armados não estatais - e permitir que o CICV visite as pessoas privadas de liberdade.
  4. Vetar recrutas. O recrutamento deve excluir: pessoas menores de 18 anos ou aqueles que cometeram violações do DIH ou outros crimes graves. Deve também ser limitado a indivíduos – não grupos inteiros ou somente o comandante do grupo – e ser voluntário e gratuito.
  5. Destacar os riscos de reputação e os benefícios. Os Estados devem fazer um apelo aos valores e conscientização da sua própria reputação e incentivá-los a respeitar o DIH, explicando que, em última instância, é do seu próprio interesse fazê-lo.
  6. Esclarecer as responsabilidade. A ambiguidade aumenta os riscos de violação, em particular quando múltiplos atores estão envolvidos. A clareza pode minimizar os riscos. Isso se aplica às linhas de comando, procedimentos para a proteção das vítimas dos conflitos armados e os canais de comunicação.
  7. Assegurar a supervisão constante. Os Estados devem monitorar a conduta dos seus aliados, por exemplo, durante o planejamento e a execução de operações militares. Devem realizar análise conjunta das operações passadas e interagir diretamente com todas as pessoas afetadas de modo que possa ser feita uma avaliação da conduta das partes em conflito. Devem também considerar a informação prestada pelos órgãos de monitoramento externos, incentivando as partes a interagiram com organizações humanitárias imparciais, como o CICV.
  8. Aperfeiçoar a responsabilização. Os Estados devem implementar procedimentos claros para si mesmos e seus parceiros receberem as denúncia de violações, investigá-las e prestar apoio para que as autoridades competentes possam lidar com as questões.
  9. Estabelecer regras e procedimentos claros. Os Estados devem ajudar a fortalecer: regras e procedimentos que regulam a conduta dos grupos armados em relação à população civil, regras de engajamento e detenção e assegurar que o grupo armado tenha uma robusta cadeia de comando. Sempre que possível, eles devem ajudar o Estado onde o grupo armado opera a integrar e supervisionar o grupo.
  10. Implementar uma estratégia de saída. Para minimizar os riscos quando o conflito acabar, os Estados devem elaborar planos de desmobilização, desarmamento e reintegração dos membros de um grupo armado, assegurar que sejam prestadas contas das armas e também tomar medidas para a proteção desses membros e das suas famílias contra a retaliação.