Âmbito e aplicação do princípio de jurisdição universal – Declaração do CICV nas Nações Unidas, 2012

18 outubro 2012

Nações Unidas, Assembleia Geral, 67ª sessão, Sexto Comitê, item 84 da pauta, declaração do CICV, Nova York, 18 de outubro de 2012.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) congratula o Sexto Comitê pela importância conferida ao princípio da jurisdição universal. O Comitê já havia demonstrado anteriormente o seu compromisso para com este princípio ao criar um grupo de trabalho cuja tarefa é avaliar melhor o seu âmbito e aplicação. O CICV acolhe com satisfação o mais recente relatório do secretário-geral sobre o tema, que apresenta minuciosamente a informação e as observações submetidas pelos Estados e observadores relevantes com relação aos tratados internacionais e pertinentes normas jurídicas e práticas judiciais internas.

O CICV observa que a contribuição feita pelos Estados, a pedido do secretário-geral, mostra uma tendência em direção ao reconhecimento da obrigação de exercer alguma forma de jurisdição universal sobre os crimes internacionais mais graves. Isso reflete a rejeição unânime desses crimes. A nossa organização reconhece a disposição demonstrada pelos Estados, como membros da comunidade internacional, de contribuir à prevenção e de enfrentar a impunidade por esses crimes, além das suas fronteiras. Essa tendência traz implícito um endosso contundente das conclusões, e o seus posteriores avanços, do Terceiro Encontro Universal das Comissões Nacionais para a Implementação do Direito Internacional Humanitário, realizado em Genebra em outubro de 2010 pelo CICV. A análise dos avanços oferece-nos conhecimento adicional e caminhos promissores a serem explorados. Gostaríamos de compartilhar aqui três pontos essenciais dos mesmos.

Em primeiro lugar, o CICV reitera o conceito de que a jurisdição universal é central ao sistema que figura nos principais documentos do Direito Internacional Humanitário elaborado para prevenir e reprimir as violações mais graves deste ramo do direito. Por exemplo, o regime de "infrações graves" estabelecido pelas Convenções de Genebra, de 1949, e os seus Protocolos Adicionais, de 1977, estipula que os Estados possuem uma obrigação legal de buscarem indivíduos suspeitos de terem cometido, ou de terem ordenado a execução, dessas infrações graves, devendo levar tais indivíduos perante os seus próprios tribunais, sem importar a sua nacionalidade e o local onde o crime foi cometido. Essa obrigação requer uma abordagem ativa; o CICV sempre enfatizou o fato de que os Estados possuem o dever de agir assim que tomarem conhecimento de que um indivíduo que tenha cometido uma infração grave entre em seu território.

Em segundo lugar, outros instrumentos internacionais cobram uma obrigação similar dos Estados para que as suas cortes sejam investidas com alguma forma de jurisdição universal sobre os crimes cobertos pelos tratados internacionais como o Segundo Protocolo, de 1999, à Convenção da Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, de 1954, a Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanas ou Degradantes, de 1984, e a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparições Forçadas, de 2006 (que entrou em vigor em dezembro de 2010). Esta obrigação também se estende aos crimes cometidos em conflitos armados.

Em terceiro lugar, a prática dos Estados contribuiu para consolidar a norma consuetudinária pela qual os Estados têm o direito de dotar os seus tribunais de jurisdição universal sobre os crimes de guerra. Estes compreendem as violações graves do artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949, e do Protocolo Adicional II, de 1977, e outros crimes que figuram no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tenham esses ocorrido em conflitos armados internacionais ou não internacionais. Relativo a esse último ponto, o CICV tem a satisfação de notar que, quando os Estados incorporam os crimes que constam no Estatuto à sua legislação nacional, de modo a ter a possibilidade de julgarem eles mesmos esses delitos, não costumam fazer distinção entre as diversas bases da jurisdição aplicável. Aplicam a mesma em todos os casos, inclusive a jurisdição universal.

Senhor (Senhora) Presidente,

O CICV está ciente dos principais desafios relacionados com a implementação da jurisdição universal, sejam de ordem técnica, jurídica, prática ou financeira. Entretanto, é encorajador o surgimento de práticas positivas que conseguiram superar com sucesso esses obstáculos. Observamos, por exemplo, que para ter a possibilidade de lidar com os crimes internacionais, vários Estados optaram por centralizar e especializar a sua capacidade em cada etapa do processo, seja relacionado às responsabilidades da promotoria, polícia, imigração ou autoridades legais, ou seja, relativo à cooperação e à assistência judiciárias internacionais. Alguns Estados chegaram a criar unidades especializadas com um mandato específico para investigar e julgar os perpetradores de crimes internacionais. O CICV reitera insistentemente que uma estratégia nacional para aperfeiçoar a investigação e julgamento desses crimes, inclusive recorrendo à jurisdição universal, deverá incluir uma abordagem abrangente para proteger testemunhas e vítimas.

Como em instâncias anteriores em que o CICV fez alusão ao tema a este Comitê, acreditamos que a jurisdição universal não é a única maneira de lidar com a impunidade de crimes internacionais. Mantemos nossa posição. A jurisdição universal não deve ser vista como um processo isolado; faz parte de um sistema mais amplo que tem por finalidade incrementar o efeito das medidas de repressão, impedindo, desse modo, a execução de crimes internacionais. O CICV também comparte a opinião que a jurisdição universal somente deverá ser exercitada em última instância, quando os tribunais que podem fundamentar a sua competência nos princípios de territorialidade ou personalidade ativa ou passiva não tiverem a capacidade para tal ou decidirem, por algum motivo, não fazê-lo. Não há como discordar da importância de investir no aumento das capacidades nacionais se existe a concordância de que os tribunais que estejam mais próximos ao local onde foi cometido o crime sejam encorajados a julgar o caso, com o pleno cumprimento das disposições aplicáveis do direito internacional. Do mesmo modo, é essencial que todas as partes – tanto Estados como organizações interestatais – realizem os esforços necessários para garantir a plena cooperação e assistência judiciais para julgar os crimes internacionais e remover os entraves deste processo.

Senhor (Senhora) Presidente,

Desde a última declaração a esta distinta assembleia, o CICV continua percebendo que os Estados preferem colocar certas condições ou limitações no exercício da jurisdição universal. O trabalho do Terceiro Encontro Universal, mencionado anteriormente, trouxe à tona a preferência dos Estados pelos casos baseados na jurisdição universal onde haja algum tipo de nexo. Isso em geral se dá com o requerimento da presença do suspeito no território do Estado que quer julgar o caso, ou pelo menos que existam os meios para garantir sua presença. O CICV insta todos os Estados e as organizações internacionais relevantes a continuarem debatendo o assunto.

A organização acompanhará de perto, como no passado, as discussões do Sexto Comitê e do seu grupo de trabalho sobre o âmbito e a aplicação do princípio de jurisdição universal. Colocamo-nos à disposição para contribuir com os debates e com o relatório do secretário-geral sobre o tema. Reiteramos a nossa determinação de manter o apoio fornecido pelo Serviço de Assessoria em Direito Internacional Humanitário aos Estados que solicitem assessoria.