Moçambique: “Eu ainda estou procurando eles”
Famílias afetadas pelos ciclones Idai e Kenneth em Moçambique recebem ajuda, enquanto ainda buscam seus entes queridos e tentam refazer suas vidas.
Era de noite quando Gabriel Salvador Mabunda acordou com o som da intensa chuva e do vento batendo. A água escorria pela sua casa. Ele acordou sua esposa e filhos, e os doze membros da família saíram para a escuridão a pé, na procura de terrenos mais altos.
Em meio às águas, eles encontraram uma árvore chamada mafurera e a escalaram, mas o alívio durou pouco. As fortes rajadas de vento começaram a quebrar os galhos. Gabriel conseguiu segurar alguns membros da sua família, mas foi separado do resto.
Gabriel encontrou pessoas que procuravam sobreviventes, que levaram ele e sua família para um lugar seguro. No dia seguinte, sua esposa também foi levada para o mesmo local com seus filhos, mas faltava um deles.
Ela deu a triste notícia ao marido: ela tentou colocar todas as crianças numa árvore, mas uma das filhas, aterrorizada porque sua mãe ia deixá-la, pulou da árvore e foi arrastada.
Eu falei com Gabriel duas semanas após a passagem do ciclone Idai pelo centro de Moçambique, em meados de março. Eles estavam morando em uma escola com outras famílias que perderam suas casas. Ele ainda estava procurando sua filha. Outros três familiares também estavam desaparecidos.
"Na minha mente, eu disse a mim mesmo que eu os perdi, porque se passaram muitos dias, mas eu continuo procurando eles," ele me disse. "Mesmo sem esperança, eu ainda estou procurando eles."
Já se passaram seis meses da minha conversa com Gabriel e eu sempre vou lembrar disso. Meu nome é Khatija Nxedlana e eu trabalho para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no sul da África. Uma semana após a passagem do ciclone Idai, eu viajei para Moçambique com uma equipe de forenses do CICV, para ajudar as comunidades afetadas.
As necessidades eram enormes. Devido à tempestade, mais de 1 mil pessoas morreram e mais de 3 milhões de vidas foram afetadas em Moçambique, Zimbábue e Malaui.
A equipe de forenses do CICV recebeu muitos relatórios sobre mortos. Quanto mais nos afastávamos da cidade de Chimoio, a nossa base de operações, mais destruição encontrávamos.
Paredes manchadas pela lama que mostravam até onde tinha chegado a água. Resíduos pendurados em fios de eletricidade. Caminhos colapsados que impediam o acesso a algumas aldeias. O nosso carro Land Cruiser foi engolido pela lama e demoramos mais de nove horas para liberá-lo. Nossa experiência foi apenas um breve contato com a realidade que enfrentam os residentes.
Uns agricultores chamados Kobus, Mike e Gilles nos ofereceram hospedagem durante a noite e compartilhamos uma refeição caseira. Uma equipe de 15 pessoas de outros grupos comunitários locais tinha montado barracas para avaliar o trabalho de limpeza do dia e planejar o do dia seguinte. Era uma equipe de socorristas da comunidade dedicada a resgatar famílias das árvores e hospedá-las em suas fazendas. Sua bondade e generosidade foram uma lição de humildade.
Na manhã seguinte, um trator puxou o nosso carro. A partir de então, caminhávamos cada vez que o caminho ficava lamacento.
Enterros dignos e seguros
Descobrimos rapidamente que os membros da comunidade enterravam os corpos onde quer que fossem encontrados. A equipe de forenses queria ter acesso ao maior número possível desses locais para compartilhar algumas técnicas básicas sobre a recuperação segura de restos mortais, e para garantir enterros dignos e respeitosos fossem realizados. Eles também aproveitavam para entregar equipamento de proteção como luvas, sacos para cadáveres, ferramentas de escavação e indicadores de sepulturas para garantir que os locais de enterro não sejam perturbados no futuro.
Kino ten 70 anos de idade e vive em Dondo, Moçambique, desde 1975. Ele perdeu tudo no #CicloneIdai e agora vive perto deste rio com alguns amigos, tentando sobreviver. Há três semanas ele perdeu contato com seus dois filhos após o ciclone.https://t.co/5O6pPek1fJ pic.twitter.com/PWtaeCAULP
— CICV (@cicv_pt) 4 de abril de 2019
Caminhamos com água lamacenta e turva até os joelhos, desconfiando dos crocodilos e hipopótamos que provocavam a morte de habitantes locais. A lama na água era tão espessa que sugava minhas botas. Cada passo exigia esforço, cada quilômetro parecia dez, e o calor era quase insuportável. Eu compreendi rapidamente que quando um membro da comunidade indicava com ânimo que o destino já estava perto, isso podia significar que a aldeia ainda estava a dez quilômetros de distância.
Com a redução do nível das águas, mais e mais corpos surgiram.
Eu lembro perfeitamente da manhã de 29 de março, quando um membro da comunidade em Matarara, não longe de Dombe, informou que tinha encontrado outro corpo.
Avançamos de carro até onde foi possível e, depois, continuamos a pé até alcançar o corpo. No nosso grupo se encontravam Manuel Samuel, Teresa Samuel e Maria Gimo, que estavam procurando um familiar desaparecido, Faustina Araujo, de 16 anos.
Juntos, caminhamos cerca de seis quilômetros até chegar a um lago. Um membro da comunidade apontou para o meio, indicando a localização dos restos mortais.
Nosso especialista forense Stephen Fonseca demarca uma área de enterros em Dombe,#Moçambique.
Pessoas da comunidade local nos mostraram três lugares onde sepultaram conhecidos e entes queridos mortos devido ao impacto do #CicloneIdai. pic.twitter.com/09U1N5QLjo— CICV (@cicv_pt) 27 de março de 2019
Em uma canoa improvisada para duas pessoas, Teresa e um membro da comunidade começaram a remar. Desde a margem do lago, eu vi como ela acenava com a cabeça antes de começar a chorar. Teresa chegou à margem gemendo e abraçou a sua família.
Depois, Stephen Fonseca, gerente forense regional do CICV, voltou para recuperar o corpo. Foi em um clima sombrio que doze homens cavaram uma cova. Tudo aconteceu tão rápido que eu, simples observadora, mal tive tempo de assimilar tudo isso.
Em meio à sua perda, a família finalmente conseguiu encerrar a história. Por fim, a preocupação e as perguntas acabaram. Deram a Faustina um enterro digno e respeitoso. Eles estavam em paz.
Uma segunda tempestade: o ciclone Kenneth
Quando as comunidades no centro de Moçambique ainda estavam se recuperando do ciclone Idai, uma segunda tempestade, que se esperava com mais intensidade, estava avançando. Apenas seis semanas mais tarde, o ciclone Kenneth atingiu terra firme, desta vez impactando na província de Cabo Delgado, uma área onde os residentes já enfrentam as consequências da violência armada.
As inundações afetaram a cidade de Pemba e os distritos de Macomia, Quissanga e Ibo, mas desta vez estavam um pouco mais preparados e muitas comunidades tinham sido evacuadas.
As imagens da devastação do #CicloneKenneth omeçam a aparecer e nós continuamos preocupados com as pessoas em #Moçambique que perderam suas casas e estão expostas às chuvas torrenciais. Também preocupados com a possibilidade de enchentes dos rios nas próximas horas e dias. pic.twitter.com/4yNyhFQkZU
— CICV (@cicv_pt) 28 de abril de 2019
No voo de volta para Moçambique, eu me sentei ao lado de um senhor de Pemba. "Boa tarde" ele me falou, cumprimentando em português, enquanto ajustava o cinto de segurança. Ele me explicou que a violência armada na sua região acabou com a liberdade das pessoas. "Eu costumava levar meus filhos fora de Pemba nos fins de semana; não podemos fazer mais isso," ele me confiou.
Uma vez em terra, as equipes do CICV distribuíram artigos de ajuda para as comunidades nas ilhas, o que exigiu uma viagem de barco de quatro horas. Para mim, foi inevitável admirar a beleza das ilhas, mesmo ciente de que seus habitantes enfrentaram tanta destruição.
Até agora, o CICV entregou artigos de emergência a mais de 1 mil famílias que perderam suas casas e pertences devido à passagem do ciclone Kenneth. Além disso, trabalha em parceria com a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (FICV), e a Sociedade da Cruz Vermelha de Moçambique. No centro de Moçambique, o CICV e a CVM entregaram artigos de emergência a cerca de 10 mil famílias, ajuda alimentar a mais de 22 mil famílias, e sementes e equipamentos agrícolas a mais de 13 mil famílias, para ajudá-las a reconstruir as suas vidas.
Hoje refletimos sobre a história destas duas tragédias, seis meses após o ciclone Idai e cinco meses após o ciclone Kenneth, e continuamos apoiando as comunidades no processo de reconstrução das suas vidas. Enquanto muitos deles estão trabalhando novamente nas suas plantações e reconstruindo suas casas, para aqueles que perderam entes queridos, o lar nunca mais será o mesmo.
Penso muitas vezes em Gabriel e na história que ele me contou sobre a sua filha. Eu me pergunto se ele a encontrou, me pergunto se ele encontrou os outros três membros da família que estava procurando e me pergunto o quanto esse sofrimento vai durar.