Um contrato global de humanidade
Discurso proferido por Peter Maurer, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Assembleia Geral das Nações Unidas, Nova York, evento paralelo de alto nível: Unir-se em torno do princípio de humanidade
Gostaria de dar as boas-vindas a todos a este evento paralelo de alto nível "Unir-se em torno do princípio de humanidade", o qual tenho o prazer de presidir hoje juntamente com Sua Excelência Xeque Sabah Khaled Al-Hamad Al-Sabah, Primeiro Ministro adjunto e Ministro de Relações Exteriores do Kuaite.
Hoje, no dia em que celebramos os 50 anos dos Princípios Fundamentais do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho e os 70 anos das Nações Unidas, gostaria de instar todos a reafirmarem o princípio de humanidade como sendo universal para os Estados e para os seus cidadãos, ademais de uma diretriz básica para todas as partes em conflitos armados.
O incumprimento do princípio de humanidade em conflitos armados
Reunimo-nos em um momento em que pleiteamos coletivamente a busca de respostas para o enorme sofrimento causado pela disseminação de conflitos e violência que testemunhamos nos últimos anos. A espiral de horror parece girar cada vez mais e mais rapidamente sem que haja uma previsão de fim para essa tendência. Como presidente do CICV, vejo as consequências deste incumprimento do princípio de humanidade em primeira mão. É um fracasso que ficou marcado de maneira mais emblemática na nossa consciência coletiva com a imagem perturbadora do corpo do pequeno Aylan Kurdi em uma praia mediterrânea e nos fez parar e perguntar: onde está a humanidade?
Converso com muitas pessoas que lamentam a aparente debilidade das normas internacionais e a escalada dos níveis de violência e brutalidade. O deslocamento atingiu níveis sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. O custo dos conflitos armados e da violência para os Estados destroçados chega a trilhões de dólares. Os conflitos armados e as suas consequências destroem o desenvolvimento conquistado ao longo de décadas e ameaçam causar importantes atrasos nos objetivos de desenvolvimento da ONU.
Em muitos lugares, parece que humanidade – o princípio básico de respeito mútuo entre todos os povos – está abandonado. O que vejo nos conflitos no mundo todo é um incumprimento deste princípio: ataques indiscriminados; ataques diretos contra civis; deslocamentos forçados; inanição; estupro e violência sexual; execuções sumárias; tratamento desumano e degradante em detenção. A violência extrema e o tratamento desumano são conduzidos deliberadamente e divulgados a nível mundial.
O poder da humanidade em ação
Mas também há histórias de esperança. Quando visito as operações concretas da nossa resposta humanitária, vejo a compaixão e a solidariedade humana. Vejo comunidades que se ajudam umas às outras, assistidas por governos e agências internacionais. Vejo refugiados e famílias que os acolhem dividindo um teto. Vejo prisioneiros recebendo visitas; famílias sendo reunidas; profissionais de saúde atendendo as pessoas; engenheiros mantendo o abastecimento de água; veterinários vacinando o tão precioso gado; e alimentos, sementes e abrigo sendo transportados com urgência. Em cada conflito armado, vejo pessoas protegidas, vidas salvas e meios de subsistência mantidos.
Em resumo, vejo a humanidade em ação.
O princípio está vivo. A nossa responsabilidade coletiva é aproveitar as suas várias manifestações e elevá-lo ao seu nível correspondente no cenário internacional.
A humanidade como princípio primordial e universal
A humanidade é o primeiro e mais importante dos princípios do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Os outros princípios nos ajudam a alcançar a humanidade. A nossa meta é "prevenir e aliviar o sofrimento onde quer que ele se verifique; proteger a vida e a saúde e garantir o respeito pela pessoa humana".
A mesma preocupação com a "dignidade e o valor da pessoa humana" está no âmago da Carta das Nações Unidas. Portanto, não é coincidência que compartilhemos esta plataforma com líderes da ONU neste ano de aniversário conjunto para as nossas duas organizações. Setenta anos depois, a geração de hoje deve reafirmar a humanidade como um princípio global.
Também contamos hoje com a presença dos Ministros de Relações Exteriores do Kuaite e da Suíça, que compartilharão conosco o seu compromisso político para com o princípio de humanidade. E, como este é também fundamental para as principais religiões do mundo, tenho o prazer de dar as boas-vindas aos nossos três panelistas da sociedade civil, que representam o islamismo, o budismo e o cristianismo.
Os nossos convidados vêm com diferentes formações – nos níveis humanitário, político e religioso – para compartilhar as suas perspectivas quanto ao princípio de humanidade. Nele, encontramos uma causa comum, pois o princípio é universal e transcende religião, cultura e etnia.
A humanidade como inspiração para o Direito Internacional
Antes de ceder a palavra aos nossos distintos convidados, gostaria de chamar a atenção para uma importante característica do princípio de humanidade, que é o fato de que ele está na origem do Direito Internacional Humanitário e do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O "tratamento humano" é uma norma básica do Direito Humanitário e dos Direitos Humanos que exige respeito pela dignidade humana por todas as partes em conflito. Deste modo, referimo-nos ao princípio universal e ao bem comum contido nas Convenções de Genebra, ratificadas universalmente, e na Carta da ONU – um princípio subjacente a muitas das normas que devem ser respeitadas.
Um contrato global de humanidade
Acredito que o movimento global pela humanidade é maior do que o pela inumanidade. Precisamos deixar isso claro em um novo movimento para unirmo-nos em torno do princípio de humanidade. Hoje lhes peço que reconheçam a humanidade como uma responsabilidade dos Estados e também como uma responsabilidade pessoal de cada cidadão do mundo.
Portanto, convido-os a construir e aderir a um novo contrato global de humanidade em todas as sociedades que vincula Estados, grupos armados não estatais e indivíduos. Com esse contrato, os líderes mundiais renovarão o seu compromisso de respaldar a humanidade até mesmo nas circunstâncias mais exasperantes, assim como as relações internacionais que influenciam e determinam o resultado dos conflitos armados.
Nos próximos meses, temos duas oportunidades importantes para isso. Primeiro, na Conferência Internacional do Movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho em dezembro, quando os Estados se concentrarão no "poder da humanidade". Segundo, na Cúpula Humanitária Mundial, no ano que vem, quando serão feitos novos compromissos globais para melhorar a ação humanitária.
Cada uma dessas reuniões de Estados e pessoas precisa afirmar um contrato global de humanidade que comprometa Estados, grupos armados não estatais e indivíduos às seguintes ações cruciais em conflitos armados:
- Respeito ativo ao Direito Internacional.
- Apoio concreto às pessoas que protegem e assistem os mais vulneráveis.
- Responsabilização assertiva pelo incumprimento do princípio de humanidade
A anuência a esse contrato global de humanidade é a base sobre a qual podemos ampliar os espaços humanitários e criar condições para tornar a vida possível e suportável para as pessoas em conflitos armados.
Obrigado a todos por participarem conosco hoje dessa ação para unirmo-nos em torno do princípio de humanidade. Concretizaremos este novo contrato de humanidade, tão desesperadamente necessário para milhões de pessoas na atualidade.