Artigo

Táticas militares ‘brutais, mas legais’ debilitam as Convenções de Genebra

ICRC HQ in Geneva

Por Cordula Droege, chefe do Departamento Jurídico do Comitê Internacional da Cruz Vermelha

Opinião: publicado originalmente em 'Le Temps', em 9 de agosto de 2024.

Um ataque aéreo mata dezenas de civis. Foguetes destroem um hospital. Forças militares bloqueiam os comboios humanitários nos postos de controle, deixando as vítimas da guerra sem comida ou remédios.

Um ataque aéreo mata dezenas de civis. Foguetes destroem um hospital. Forças militares bloqueiam os comboios humanitários nos postos de controle, deixando as vítimas da guerra sem comida ou remédios.

Tais atos são abomináveis, dolorosos para quem os testemunha e muito piores para quem os vivencia. No entanto, as forças armadas muitas vezes retratam esses acontecimentos como resultados lamentáveis, mas legais da guerra – “brutais, mas legais”, como dizem alguns especialistas da minha área.

Setenta e cinco anos após a criação das Convenções de Genebra, os conflitos armados atuais e as normas do Direito Internacional Humanitário (DIH) que os regem correm o risco de se tornarem um cenário moral e ético alternativo, um espaço no qual os países consideram que podem usar livremente a força militar sem restrições, enquanto mantêm a postura e o verniz de atores cumpridores da lei.

Setenta e cinco anos após a criação das Convenções de Genebra, os conflitos armados atuais e as normas do Direito Internacional Humanitário (DIH) que os regem correm o risco de se tornarem um cenário moral e ético alternativo, um espaço no qual os países consideram que podem usar livremente a força militar sem restrições, enquanto mantêm a postura e o verniz de atores cumpridores da lei.

Meu receio é que muitas vezes o objetivo original das Convenções de Genebra seja posto de lado e as normas sejam invertidas. Em vez de serem interpretadas para proteger civis, são invocadas para justificar um nível de mortes, ferimentos e destruição que o DIH foi criado para evitar

Se as forças militares globais continuarem interpretando o DIH sem limites nem consistência, só nos restará assistir impotentes enquanto as Convenções de Genebra deixam de ser um acordo internacional concebido para salvar vidas e se tornam cada vez mais uma ferramenta jurídica a serviço do poder militar.

Prevenir o custo humano catastrófico da guerra é um objetivo central do direito internacional moderno. Algumas normas, como as da Carta das Nações Unidas, pretendem eliminar completamente a guerra, exigindo, em vez disso, a resolução pacífica dos litígios. Outras normas, como as das Convenções de Genebra, intervêm para nos proteger quando todo o resto falhou. As Convenções, às quais todos os países aderiram, restringem o comportamento das partes em conflito durante um conflito, independentemente de como este começou ou de quem é o culpado e se o seu inimigo cumpre a lei ou não.

Entendido em termos mais simples, o DIH reconhece que ambos os lados irão inevitavelmente matar, ferir e destruir. Porém, proíbe-os de desumanizar o adversário. Suas normas procuram estabelecer um equilíbrio entre dois imperativos inconciliáveis: a necessidade militar e a nossa humanidade comum. Estabelecem um limite exterior de comportamento aceitável, um limite além do qual a nossa humanidade seria subvertida de uma forma que nem mesmo a guerra pode justificar.

Alguns atos são sempre proibidos na guerra: tortura, estupro, tomada de reféns, ataques contra civis e ataques indiscriminados. Em outras áreas, as normas têm mais matizes: baixas civis incidentais devem ser evitadas, ou pelo menos minimizadas. 

É no pragmatismo desse enfoque que o DIH encontra a sua força e seu apoio universal. No entanto, apesar de ter tantas vantagens, o Direito está sob imensa pressão. Como podemos continuar acreditando nas normas da guerra quando tantos civis morrem em conflitos? Será que as normas são inadequadas? Será que não estão sendo aplicadas?

O incumprimento e a impunidade são fraquezas evidentes. A enorme lacuna entre as normas acordadas e a realidade no terreno sempre foi um sério desafio ao DIH. As violações acontecem à vista de todos, dando origem a desilusões justificáveis e até mesmo ao cinismo.

No entanto, também existem forças mais sutis, porém igualmente perniciosas, em ação. As partes em conflitos armados têm utilizado repetidamente o DIH para justificar as suas ações quando se afastam das expectativas que normalmente seriam aplicáveis.

Hoje encontramos com demasiada frequência exemplos de interpretações seletivas ou de má-fé. Quando os Estados são acusados de praticar tortura e maus-tratos, a maioria nega. Quando essas negações se tornam insustentáveis, alguns governos recorrem a páginas e mais páginas de argumentos pseudolegais e eufemismos. No final, tais argumentos são expostos como farsas e, no entanto, quando chega a próxima crise, esses mesmos argumentos são apresentados de novo.

O direito internacional já é um corpo jurídico modesto. Não proíbe todas as vítimas civis em conflitos armados. Limita-se a tentar proteger, na medida do possível, os civis nas operações militares. Aplicadas de boa-fé, essas normas podem salvar e têm salvado muitas vidas. No entanto, o direito internacional baseia-se na presunção de que as instituições e os indivíduos que aplicam essas normas aceitam que todas as vidas civis têm o mesmo peso. É fácil ver por que uma parte desvalorizaria a vida do seu inimigo. Mas também é fácil compreender como a diminuição do valor da vida civil acabará por destruir o significado da lei.

Os Estados precisam agir para inverter estas tendências. Podem liderar pelo exemplo e exigir que todos sigam os mesmos padrões; influenciar-se mutuamente, impondo condições para a assistência militar e a transferência de armas; aderir a tratados que ainda não ratificaram; e responsabilizar os infratores nos seus tribunais nacionais.

Ninguém pode argumentar de forma plausível que o Direito dos Conflitos Armados não é por natureza adequado para a sua finalidade. Os Estados e os seus militares o criaram intencionalmente após as duas guerras mundiais. Nenhum governo no mundo nega que esteja vinculado ao DIH. Os governos e os seus assessores jurídicos precisam assumir a sua responsabilidade de defender com seriedade as normas da guerra – não apenas a letra, mas o espírito da lei.

As Convenções de Genebra nasceram dos escombros de Varsóvia e Leningrado para combater a desumanização completa de milhões de civis e de prisioneiros. Agora elas completam 75 anos, complementadas pelos seus Protocolos Adicionais de 1977 e outras normas do DIH que reforçam a proteção civil. Muito foi conseguido, mas, quando olhamos para os escombros de Aleppo, Mariupol e Gaza, ou quando olhamos para as condições de detenção desumanas em que as pessoas são mantidas nos conflitos de hoje, isso não é suficiente.

As vítimas de conflitos armados não precisam de uma cultura de defesa do DIH. Precisam que os Estados e as forças armadas cumpram os compromissos que fizeram quando assinaram as Convenções de Genebra, isto é, fazer o possível para reduzir o sofrimento da população civil na guerra.

Originalmente publicado em francês em 'Le Temps' em 9 de agosto de 2024