Brasil: Oficina sobre Perda Ambígua treina profissionais que trabalham com desaparecimento
Evento inédito em São Paulo aprofundou a compreensão sobre a natureza do sofrimento de pessoas que desconhecem o paradeiro de seus familiares
São Paulo – "Enquanto tiver pernas para andar, eu vou continuar procurando pelo meu filho." Frases como essa os familiares repetem e repetem por anos quando são chamados por amigos, familiares, vizinhos e, em alguns casos, até profissionais de saúde mental, a esquecer de seu ente querido que está desaparecido e seguir a vida. Mas é importante compreender a realidade ambigua e desafiadora em que vivem, diferente de um luto.
Com o objetivo de colaborar com parceiros, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) realizou pela primeira vez no Brasil, nos dias 29 e 30 de junho, uma oficina sobre Perda Ambígua. A temática é pouco conhecida no País e é um modelo que reflete especificidades da dor de familiares de pessoas desaparecidas, embora possa ser aplicado a todos que passaram por diferentes situações de desastres inesperados – como guerras, catástrofes naturais, sequestro, privação de liberdade – e situações comuns - como migração, divórcio, desemprego, entre outros.
"As pessoas estão fisicamente ausentes, mas presentes na mente, nas lembranças, porque não há uma experiência concreta de morte, portanto não é um luto", explicou Judith Gomez de León, psicoterapeuta familiar sistêmica mexicana e especialista no modelo. "Desaparecimento é dor profunda e ampla, porque está combinado com incerteza", complementou. Essas pessoas estão em alerta permanente, indisponíveis para a vida afetiva e social, ausentes dentro da familia e vivem o estigma da comunidade.
Gomez de León, que já apoiou o programa de Atenção a Familiares de Pessoas Desaparecidos do CICV no México, Guatemala, Honduras e Peru, entre outros países, com artigos publicados sobre o assunto, treinou 23 profissionais da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), do Ministério Público do Estado de São Paulo, da Cruz Vermelha Brasileira (CVB), professoras e pesquisadoras da Universidade de São Paulo (USP), da Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Universidade Cruzeiro do Sul que trabalham prestando serviços gratuitos para a população.
"O conceito de Perda Ambígua é um eixo fundamental do trabalho porque é a partir dele que compreendemos as necessidades dos familiares, pessoas envolvidas simultaneamente na perda e na busca, na ausência e na presença", explica a psicóloga Melania Marinelli, do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID) do Ministério Público do Estado de São Paulo. "É muito importante no atendimento psicológico de pessoas que não têm um luto e uma experiência que se encerra", complementa Melania, para quem a oficina foi uma oportunidade de ampliar a compreensão sobre a perda como algo que todos passam. Parte da oficina foi refletir sobre as próprias vidas.
Por viverem uma condição pouco compreendida pelas pessoas que os rodeiam e pelos serviços existentes, os familiares de pessoas desaparecidas tendem a permanecer isolados e suas necessidades muitas vezes não são compreendidas e atendidas por profissionais de diferentes serviços. As situações de estresse e risco aumentam. "Especialmente quando eles permanecem por um tempo prolongado submetidos a esta situação, diferentes esferas de sua saúde fisica e mental e ao seu bem-estar psicossocial acabam sendo afetadas e muitos adoecem", afirma a Responsável pelo Programa de Saúde Mental e Apoio Psicossocial da Delegação Regional do CICV para Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, Renata Reali.
Diretor da Ouvidoria da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Alcyr Barbin Neto, considera que o modelo deve ser mais aplicado na política de saúde mental. " A oficina foi muito enriquecedora para entender que a perda ambígua não é algo que é resolvido, as equipes devem ser orientadas a construir soluções sistêmicas, entendendo que as famílias tem que construir estratégias para lidar com a ausência e presença e se reacomodar para lidar com as outras atividades da vida", avaliou.
A formação promovida pelo CICV tem o objetivo de colaborar com governos e sociedade civil para melhorar essa atenção. Os familiares necessitam de espaços de convivência com outras famílias que vivem a mesma experiência, assim como de atenção médica, jurídica, de assistência social, psicológica e psicossocial integrada, com aplicação de um enfoque diferencial e interdisciplinar, que esteja associado às suas demais prioridades.
O desaparecimento é um grave problema humanitário no mundo. No Brasil, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em junho, mostram que houve em 2021 65.225 registros de pessoas desaparecidas e 31.733 localizadas. O CICV realizou uma Avaliação as Necessidades dos Familiares de Pessoas Desaparecidas (ANF) no estado de São Paulo. Saiba mais no relatório Ainda.
Mais informações sobre o tema no site especial : https://desaparecimento.com.br/
Mais informações
Sandra Lefcovich, CICV Brasília, (61) 98175-1599
slefcovich@icrc.org