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Geórgia: um relato pessoal

02-10-2008 Reportagem

Quando um confronto na Geórgia expulsou milhares de pessoas de seus lares, os velhos e fracos demais para fugir ficaram para trás, freqüentemente isolados. Zoé Brabant, integrante de uma equipe móvel do CICV foi a Gori atender essas pessoas e relata sua experiência.

     

    ©ICRC/J. Barry/ge-e-00334      
   
Nos vilarejos nos arredores de Gori, os idosos que ficaram quando os combates começaram em agosto, sentem-se assustados e sem contato com seus familiares. O CICV tem visitado os vilarejos para avaliar as necessidades da população e trazer alívio. 
         

Eu sempre me surpreendo quando a vida me leva a lugares do mundo que nunca pensei em explorar. Desta vez, foi com uma antecedência de apenas 24 horas que a Cruz Vermelha Canadense me chamou para ir à Geórgia na função de enfermeira de saúde pública. Era meu primeiro trabalho com essa organização sob a égide do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a primeira vez nessa parte do mundo na d ivisa entre a Europa e a Ásia, a primeira vez em uma área de conflito (apesar de talvez o Afeganistão e o Sri Lanka se encaixarem nesse perfil...). Era muita novidade!

  Um país suspenso  

Depois de passar alguns dias de preparação na capital onde é difícil imaginar que a guerra existe, partimos para Gori. Ao contrário das expectativas geradas pelos noticiários televisivos, esta pequena cidade de 70 mil habitantes, que nos servirá de base, está quase intacta. Alguns edifícios parcialmente incendiados, que são fotografados de todos os ângulos, representam os únicos vestígios dos combates que ocorreram. Agora os russos já se retiraram e Gori está voltando lentamente ao normal. A maioria da população que havia fugido voltou, a feira acontece todos os dias, as crianças brincam nas ruas estreitas e ontem a água voltou a jorrar da fonte na praça principal. Parece que a única coisa que falta é reabrir o Museu Stalin (Gori era sua cidade natal).

Então em uma manhã, estamos a caminho de vilarejos perto da Ossétia do Sul onde pretendemos prestar serviços ambulatoriais. Nos portões da cidade, na entrada da área intermediária, vemos primeiro o posto de controle georgiano e em seguida o russo. A estradinha que tomamos a partir daí vai de um vilarejo a outro.

Imagine um cenário balcânico, acrescente uma pitada de Ásia, um pouco mais da Rússia e o aconchego de um vale no coração de um país entre dois mares, e terá uma idéia das paisagens. Casas de tijolos claros rodeadas de árvores frutíferas que são o sustento da região: pêssegos, nectarinas, maçãs e ameixas de todas as cores estão completamente maduros. Vinhas, com cachos pendentes de uvas verdes e vermelhas cobrem estruturas em volta das casas, os pátios e calçadas – qualquer lugar onde possam oferecer alguma sombra, até no centr o do povoado. Há vacas e cachorros, plantações de trigo e milho, mas nenhuma pessoa à vista.

Os estragos da guerra são muito mais evidentes aqui. Casas calcinadas, plantações incendiadas, árvores cortadas e objetos abandonados na estrada nos permitem imaginar os acontecimentos das últimas semanas. O silêncio, interrompido pela passagem de comboios militares em alta velocidade, reforça o aspecto surreal do quadro diante de nós. E ninguém ainda à vista, como se esta região do país estivesse prendendo a respiração – um país onde a vida está suspensa.

  Aqueles que ficaram para trás  

Podemos montar nossa pequena clínica móvel em um velho ponto de ônibus ainda mais envelhecido pela guerra, à sombra das árvores ou em um posto médico temporariamente fechado, freqüentemente danificado e saqueado. Duas mesas, algumas cadeiras, uma caixa com medicamentos e ataduras. Aguardamos. Uma senhora idosa aparece no final da rua, depois outra. Um homem deixa a sua casa de bengala na mão. Outro passa com um carrinho de mão. Um a um, os que estão escondidos em suas casas ousam sair à rua. As consultas começam calmamente. Atendemos até 250 por dia.

O atendimento médico que fornecemos aqui é muito diferente de tudo que já vi em outros países. Não apenas porque o país em si é diferente cultural e geograficamente, mas em outros aspectos também. Nem só porque seu sistema de saúde é muito mais desenvolvido do que o do Haiti ou da Republica Democrática do Congo e vemos uma variedade maior de patologias. Nem tampouco porque são quase sempre médicos e enfermeiras georgianos que fazem os atendimentos – o que me parece apropriado.

Não, a diferença mais obvia é que as pessoas que atendemos têm a idade média de 75 anos. Isto se deve ao fato de que a grande maioria da população fugiu durante os combates, deixando para trás seus lares, trabalhos e pais idosos. Os pais ficaram porque eram fisicamente incapazes de acompanhar a retirada apressada. Desde então, eles se escondem em suas casas com medo – especialmente dos grupos armados e de ladrões que se aproveitam desse período de instabilidade para levar tudo que conseguem pegar: móveis, pratas, medicamentos, qualquer coisa útil ou vendável.

  Medo e ansiedade  

Nossos pacientes sofrem sobretudo dos traumas da guerra, medo, ansiedade sobre o que pode ter acontecido com seus familiares e toda a gama de doenças condizentes com a idade. Quando vêem o comboio do CICV parar no vilarejo, esperam para ver se algo acontece, depois saem de seus esconderijos e caminham em nossa direção com passos lentos e curtos. Querem ajuda e medicamentos para suas doenças crônicas e dores somáticas, além de ver seus amigos

Nossa clínica também é um lugar de reencontro para todas essas senhoras idosas vestidas com saias xadrez e blusas floridas e todos esses homens de valor, desdentados e com mãos calejadas pelo trabalho nos campos. É extremamente comovedor vê-los se abraçarem chorando diante do rosto de um ente querido, que não esperavam rever jamais.

Todos trocam notícias, e cada um tem uma história triste para contar. Enquanto um velho cego me conta sua história durante uma visita a domicílio, sua mulher, tão idosa quanto ele, se movimenta na cozinha limpando migalhas da mesa, escolhendo pêssegos e lavando-os para mim. Sempre tão generosos e hospitaleiros, mesmo quando não lhes resta quase nada.

Se entendo corretamente o que o velho Sasha diz, segundo a tradução da minha coleg a, abalada pelo que está ouvindo e desacostumada com termos médicos, ele tem uma doença ocular e deveria ter sido operado em agosto para recuperar um pouco da visão. Entretanto ele não pôde ser operado. Além disso, vendeu seu velho carro para pagar o alto custo do procedimento, porém os ladrões levaram todo o seu dinheiro. Os vizinhos que se aproximaram para ouvir choram por sua desgraça e pelas suas próprias. Eu não tenho palavras. O que posso fazer por ele?

Felizmente uma aparente estabilidade nesses vilarejos está possibilitando o lento retorno da população. Todo o dia vejo homens mais jovens voltando e também algumas mulheres. Ontem vi uma criança pela primeira vez. Essa é provavelmente a coisa mais reconfortante que poderia acontecer a essas pessoas: poder rever seus entes queridos e voltar a sentir um pouco de normalidade nas suas vidas.