Pessoas caminham diante da delegação do CICV em Sarajevo (1995). O cerco de Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina, durante a Guerra da Bósnia, durou de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996. É considerado um dos mais longos cercos a uma capital na história da guerra moderna. Foto: René Clément/CICV

Proteção da população civil durante cercos: o que diz o Direito

A história da guerra está repleta de casos de cercos que são usados como método de guerra. Alguns deles são famosos pelo número de mortes extremamente elevado. Os conflitos contemporâneos chamaram novamente a atenção da comunidade internacional para os cercos e outras táticas de sítio. Com frequência, os cercos têm consequências graves para um grande número de civis.
Artigo 23 janeiro 2024

O que é um cerco?

Não existe uma definição de "cerco" ou "sítio" no âmbito do Direito Internacional Humanitário (DIH). Um cerco pode ser descrito como uma tática para cercar as forças armadas de um inimigo, a fim de impedir o seu movimento ou isolá-las dos canais de apoio e abastecimento.
Em geral, o objetivo final de um cerco é forçar o inimigo a render-se e, nos conflitos contemporâneos, as forças sitiantes normalmente tentam capturar a área sitiada mediante hostilidades. Os cercos ou outras formas de sítio também podem fazer parte de um plano operacional mais amplo: por exemplo, podem ser utilizados para isolar grupos de forças inimigas deixados para trás durante uma invasão.
Os cercos recentes foram acompanhados por bombardeios e, por vezes, intensos combates entre as forças sitiantes e as forças sitiadas, criando um perigo constante para a população civil encurralada na área sitiada. A pouca ou nenhuma energia e a degradação dos serviços públicos são também características dos cercos, em particular o colapso de hospitais e serviços médicos, e dos sistemas de tratamento de água e esgotos. As famílias são forçadas a fazer escolhas impossíveis com a pouca comida e água disponíveis. Fatores como a idade, funções específicas de gênero ou deficiências podem agravar as dificuldades no acesso a recursos escassos. As consequências são fome, desnutrição, desidratação, doenças, lesões e morte.

Os cercos são proibidos pelo DIH?

Os cercos só podem ser dirigidos exclusivamente contra as forças armadas inimigas.
Infelizmente, muitas vezes a população civil fica encurralada quando cidades inteiras ou outras áreas povoadas são sitiadas, causando um sofrimento indescritível. O DIH oferece proteção vital a estes civis, impondo limites ao que as partes podem fazer durante tais cercos. Crucialmente, os civis devem ser autorizados a abandonar uma área sitiada, quando for necessário poupá-los dos efeitos das operações militares ou quando lhes faltarem os suprimentos essenciais à sua sobrevivência, inclusive sempre que um cerco envolver o uso da fome como método de guerra.

A parte sitiante é obrigada a permitir que civis deixem uma área sitiada?

Sim. A população civil civis não deve ficar encurralada em cercos, e ambas as partes devem permitir que os civis abandonem a área sitiada.
As Convenções de Genebra contêm disposições essenciais, mas limitadas, sobre a evacuação (incluindo por mar) de categorias específicas de pessoas em risco específico, incluindo pessoas feridas e doentes, assim como determinados civis como pessoas com deficiências, idosas, crianças e mulheres grávidas.
De um modo mais geral, hoje em dia uma parte sitiante não pode forçar civis a permanecerem contra a sua vontade na área sitiada.
As normas do DIH aplicam-se à condução das hostilidades durante os cercos, em particular os princípios e normas de distinção, proporcionalidade e precauções. A implementação de diversas normas decorrentes do princípio de precauções exige que ambas as partes permitam que os civis deixem a área sitiada para escapar das hostilidades sempre que possível. Em particular, deve-se ter cuidado constante para poupar a população civil em todas as operações militares e devem ser tomadas todas as precauções possíveis, nomeadamente na escolha dos meios e métodos de guerra, para evitar ou minimizar perdas acidentais de vidas civis, ferimentos em civis e danos a bens civis. Em uma área sitiada onde decorrem hostilidades, e considerando o risco que isso representa para a população civil, uma medida de precaução óbvia é evacuar os civis ou, pelo menos, permitir que saiam. As partes também devem emitir avisos prévios eficazes sobre ataques que possam afetar a população civil, cujo objetivo é precisamente permitir que os civis tomem medidas para se protegerem.
Atirar ou atacar civis que fogem de uma área sitiada equivaleria a um ataque direto contra civis e é absolutamente proibido.

A parte sitiante pode usar a fome como método de guerra?

O DIH proíbe usar a fome da população civil como método de guerra. Privar os civis de suprimentos essenciais à sua sobrevivência (tais como alimentos, água e medicamentos) em uma área sitiada não pode ser utilizado por uma parte sitiante como um meio legítimo para subjugar o seu inimigo.
Consequentemente, são proibidos cercos que tenham por objetivo fazer a população civil passar fome. Uma parte sitiante que utilizar a fome como método de guerra contra as forças inimigas deve assegurar que os seus efeitos sejam dirigidos exclusivamente a essas forças inimigas. Afirmar que o propósito era somente matar de fome as forças inimigas não serve de justificativa para usar a fome como método de guerra, também privando indiscriminadamente a população civil dos suprimentos essenciais para a sua sobrevivência. Sempre que civis estiverem encurralados na área sitiada, a parte sitiante deve permitir que eles abandonem a área sitiada, pois a experiência mostra que, na prática, estes civis compartilharão a privação causada por um cerco e as suas necessidades básicas poderão deixar de atendidas. Se, mesmo assim, houver civis que permaneceram, a parte sitiante deve cumprir as normas do DIH sobre ajuda humanitária à população civil.

A parte sitiada também tem obrigações?

Sim, a parte sitiada também tem obrigações. Deve tomar todas as precauções possíveis para proteger a população civil sob o seu controle contra os efeitos dos ataques. Isto pode implicar permitir a saída de civis ou de outra forma removê-los de uma área próxima de objetivos militares, por exemplo, evacuando-os de uma área sitiada onde as hostilidades estão em curso ou onde se espera que ocorram.
A parte sitiada pode ficar tentada a impedir a saída da população civil. Ter uma área sitiada livre de civis tornaria mais fácil para as forças sitiantes matarem de fome as forças sitiadas ou daria às primeiras mais margem de manobra ao atacar objetivos militares na área sitiada. No entanto, o DIH proíbe categoricamente a utilização da presença de civis para tornar certas áreas imunes a operações militares, por exemplo, nas tentativas de impedir as operações militares das forças sitiantes. Isto equivaleria a utilizar a população civil como escudo humano.
Uma parte sitiada que não seja capaz de fornecer os suprimentos essenciais à sobrevivência da população civil sob o seu controle deve consentir em operações de ajuda humanitária para civis (ver também abaixo Quais são as normas adicionais do DIH para garantir a sobrevivência da população civil sitiada e as normas referentes à ajuda humanitária?)

Os cercos podem ser usados para obrigar os civis a abandonarem uma determinada área?

Não. Embora as evacuações temporárias possam ser necessárias, e mesmo legalmente exigidas, os cercos não devem ser utilizados para obrigar os civis a abandonarem permanentemente uma determinada área.
Os civis podem fugir de uma área sitiada ou cercada ou ser evacuados voluntariamente. Sob condições muito estritas, também podem ser evacuados contra a sua vontade por uma parte no conflito. A questão da evacuação forçada de uma área sitiada levantou questões no que diz respeito ao deslocamento forçado. Nos termos do DIH, o deslocamento forçado é proibido, a menos que a segurança dos civis envolvidos ou razões militares imperativas assim o exijam.
Para garantir que o deslocamento não seja forçado ou ilegal, este deve ser temporário e não pode durar mais do que a segurança dos civis envolvidos ou razões militares imperativas assim o exigirem. As pessoas deslocadas, quer tenham fugido ou tenham sido evacuadas, têm o direito ao regresso voluntário e em segurança às suas casas ou locais de residência habitual assim que as razões do seu deslocamento deixarem de existir. Por exemplo, os civis deslocados para a sua própria segurança devido às hostilidades durante um cerco devem ser transferidos de volta para as suas casas assim que as hostilidades na área em questão tiverem cessado.
Os atos proibidos de deslocamento forçado podem incluir aqueles resultantes de atos ilegais nos termos do DIH cometidos pelas partes no conflito para coagir civis a partirem, inclusive por meio da condução ilegal de hostilidades. Dado que as hostilidades durante os cercos implicam um elevado risco de vítimas civis acidentais, a segurança dos civis envolvidos pode, no entanto, exigir que as partes deixem os civis abandonarem a área sitiada.

O DIH protege civis que partem ou são evacuados de uma área sitiada?

Em todas as circunstâncias, o DIH proporciona fortes proteções às pessoas civis que partem ou são evacuadas de uma área sitiada.
De uma perspectiva prática, as evacuações seguras são organizadas melhor quando as partes em conflito acordam sobre os procedimentos necessários. Na ausência de tal acordo, ambas as partes continuam obrigadas a tomar todas as precauções possíveis para evitar causar danos incidentais aos civis que fogem durante as hostilidades.
Em caso de deslocamento, independentemente de os civis fugirem ou serem evacuados de uma área sitiada, devem ser tomadas todas as medidas possíveis para garantir que os civis em questão sejam recebidos em condições satisfatórias de abrigo, higiene, saúde, segurança (incluindo contra a violência sexual e de gênero) e nutrição e que os membros da mesma família não sejam separados.
A parte sitiante pode decidir examinar as pessoas deslocadas por razões de segurança, tais como descobrir se membros das forças sitiadas se misturaram com os civis que saíram da área sitiada. O rastreio e outras medidas de segurança tomadas pela parte sitiante devem ser realizadas com pleno respeito pelo DIH e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), particularmente no que diz respeito ao tratamento humano, às condições de vida e às salvaguardas processuais relevantes em casos de detenção e à proibição de punição coletiva.

O DIH protege civis que permanecem em uma área cercada ou sitiada?

Civis que permanecem em uma área sitiada continuam sendo protegidos como civis, a menos que e durante o tempo em que participem diretamente nas hostilidades. O simples fato de permanecer em uma área sitiada – seja voluntariamente, pela força ou como escudos humanos – não equivale a participar diretamente das hostilidades. Além disso, a presença de combatentes sitiados entre a população civil não significa que os civis percam a sua proteção contra ataques diretos. As forças sitiadas e sitiantes permanecem, portanto, sujeitas a todas as normas que protegem os civis contra os efeitos das hostilidades.
Além disso, as normas do DIH referentes à fome e às operações de ajuda foram concebidas para garantir – em conjunto – que os civis não sejam privados de suprimentos essenciais à sua sobrevivência.

Quais são as normas adicionais do DIH para garantir a sobrevivência da população civil sitiada e as normas referentes à ajuda humanitária?

Em primeiro lugar, além da proibição de utilizar a fome da população civil como método de guerra, o DIH proíbe atacar, destruir, remover ou inutilizar objetos indispensáveis à sobrevivência da população civil. Mesmo quando tais objetos sejam também utilizados pelas forças armadas inimigas, são proibidas as operações contra eles se for previsível que estas deixarão a população civil com quantidades insuficientes de alimentos ou água, assim, provocando a sua fome.
Em segundo lugar, durante um cerco, as partes continuam vinculadas às obrigações do DIH relativas às operações de ajuda e acesso humanitário. O DIH prevê que as organizações humanitárias imparciais têm o direito de oferecer os seus serviços para a realização de atividades humanitárias, especialmente quando as necessidades da população afetada pelo conflito armado não são atendidas. Uma vez acordadas operações imparciais de ajuda humanitária, as partes no conflito armado – que mantêm o direito de controlar a natureza humanitária das remessas de ajuda – devem permitir e facilitar a passagem rápida e desimpedida destas operações de ajuda.
Uma parte sitiada que não for capaz de fornecer os suprimentos essenciais à sobrevivência da população civil sob o seu controle deve consentir em operações de ajuda humanitária a civis. Da mesma forma, uma parte sitiante deve permitir o acesso humanitário e operações de ajuda aos civis que permanecem na área sitiada. Isto está sujeito ao direito de controle das partes e à capacidade de impor restrições temporárias e geograficamente limitadas exigidas pela necessidade militar no momento e local das hostilidades em curso.
Segundo o DIH, as partes que têm de permitir e facilitar a ajuda humanitária também têm o direito de impor medidas de controle. Estas medidas podem servir vários propósitos: podem permitir que as partes em um conflito armado se certifiquem de que as remessas de ajuda humanitária são exclusivamente humanitárias; podem impedir que os comboios de ajuda humanitária estejam em perigo ou dificultem as operações militares; e podem garantir que os suprimentos e equipamentos de ajuda humanitária cumpram as normas mínimas de saúde e segurança. As medidas de controle devem ser tomadas de boa-fé e não podem resultar em atrasos indevidos ou na impossibilidade da entrega da ajuda humanitária.

O DIH protege as pessoas feridas ou doentes em uma área cercada ou sitiada?

Sim, o DIH contém normas extensas relativas ao respeito e à proteção das pessoas feridas ou doentes, assim como das pessoas e objetos designados para cuidar delas.
As Convenções de Genebra contêm algumas disposições explícitas sobre a evacuação de pessoas feridas e doentes de áreas sitiadas e a passagem de pessoal e equipamento médicos para essas áreas (p. ex.: art. 15 CG I, art. 18 CG II e art. 17 CG IV). De um modo mais geral, as partes devem tomar todas as medidas possíveis para procurar, recolher e evacuar as pessoas feridas e doentes e devem prestar – de acordo com as possibilidades e com o menor atraso possível – os cuidados e atendimentos médicos exigidos pela sua condição.
Todas estas normas se aplicam não apenas aos civis feridos e doentes, mas também beneficiam membros das forças armadas inimigas feridos e doentes.
Finalmente, as pessoas feridas e doentes, o pessoal médico, os estabelecimentos e unidades de saúde – incluindo hospitais – e os meios de transporte sanitários não devem ser atacados ou de outra forma impedidos de desempenhar a sua função médica. Esta proteção específica só pode ser perdida excepcionalmente e em condições muito rigorosas. Para mais detalhes sobre a proteção de hospitais durante conflitos armados, incluindo cercos, consultar Proteção de hospitais durante conflitos armados: o que diz o DIH.

O CICV participa das evacuações de áreas cercadas ou sitiadas?

Qualquer iniciativa que proporcione um alívio da violência a pessoas civis e lhes permita partir voluntariamente para áreas mais seguras é bem-vinda.
Como intermediário humanitário neutro e imparcial, o CICV pode ajudar a facilitar a passagem segura de civis para fora das áreas sitiadas, uma vez que as partes tenham chegado a um acordo. Tais medidas devem ser bem planejadas e implementadas com o acordo das partes em conflito e devem garantir a segurança das pessoas evacuadas e do pessoal humanitário. (Ver acima O DIH protege os civis que partem ou são evacuados de uma área sitiada?).
Não obstante o acordo entre as partes, as operações de passagem segura continuam sendo operações perigosas. Abrangem riscos importantes para as populações afetadas e para o pessoal humanitário envolvido. Esses riscos devem ser controlados de forma a minimizar os danos potenciais para todas as partes interessadas. Nas últimas décadas, as operações de passagem segura salvaram a vida de centenas de milhares de pessoas.
Como organização humanitária, o CICV nunca ajuda a organizar ou realizar evacuações forçadas (Ver também acima Os cercos podem ser usados para obrigar os civis a abandonarem uma determinada área?). Isso se aplica a todos os lugares onde trabalhamos. Não participamos de nenhuma operação vai contra a vontade das pessoas, os nossos Princípios Fundamentais ou o Direito Internacional Humanitário.
Para mais detalhes sobre como funcionam as passagens seguras ou corredores humanitários para ajudar as pessoas em zonas de conflito, incluindo cercos, consultar Como os corredores humanitários funcionam para ajudar as pessoas em zonas de conflito.